Folha de S. Paulo


Entre quatro paredes

A violência doméstica é vista como questão de gênero. Se a raiz cultural do domínio do homem no casamento tradicional persiste com maior ou menor intensidade nas sociedades contemporâneas, o que justifica políticas públicas de prevenção, as relações afetivas geram conflitos que extrapolam a explicação meramente feminista.

Acontecimento recente, em Porto Alegre, chama a atenção. Uma jovem teria esfaqueado sua companheira até a morte e foi presa em flagrante. Os ingredientes da tragédia estariam ligados ao ciúme ou ao inconformismo com o rompimento unilateral. Aparentemente incomum, a violência doméstica entre casais do mesmo sexo permanece no limbo, apesar do interesse acadêmico e do alerta de entidades que tentam monitorá-la. Pesquisas indicam taxas surpreendentes de ocorrências nos EUA, às vezes superiores às de casais heterossexuais. Aqui não há levantamento.

Se a mulher vítima da violência masculina é cercada de desconfianças em ambientes machistas, homens e mulheres vítimas de ataques de parceiros do mesmo sexo encontram obstáculos mais poderosos. Há o temor de que a revelação de casos de agressão reforçaria o preconceito contra a homossexualidade, vista como aberração em recintos conservadores.

A Lei Maria da Penha é um instrumento importante porque instituiu, por exemplo, as chamadas medidas protetivas, mas está longe da perfeição. Foi concebida para "coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher", generalizando seu estado de vulnerabilidade diante do homem -o que não é real. E cria desequilíbrios. Por ser estruturalmente voltada para a proteção da mulher, só residualmente alcança outras modalidades de conflito. Mesmo estabelecendo que "as relações pessoais" independem de orientação sexual, como será tratado aquele que recorrer a uma delegacia queixando-se do parceiro que o persegue e humilha? Ele receberá, por analogia, o que a Lei Maria da Penha concede às mulheres atacadas? Terá que enfrentar divergências doutrinárias e jurisprudenciais que podem redundar em atrasos e impunidade? O que pensa a comunidade gay?

Por outro lado, especialistas distinguem a violência ou a intimidação sistemática do homem contra a mulher em razão do gênero, da violência eventual, inclusive de mulheres contra homens, como desfecho de desentendimentos. Dar tratamento jurídico igual para situações tão distintas é falta de mira.

Pesquisa do Ministério da Justiça aponta que 80% das mulheres não querem a prisão de parceiros agressores. Além das que são intimidadas -elas são muitas-, há as que preferem soluções alternativas (tratamento psicológico, prestação de serviços). Passado o perigo, podem preferir que os pais de seus filhos não sejam submetidos à pouco acolhedora burocracia policial e judicial.

Como resposta ao costume patriarcal e ineficaz de trocar a punição do agressor por "cestas básicas", a lei impede a aplicação dos mecanismos previstos para crimes de menor potencial ofensivo (transação e suspensão do processo) em casos de violência doméstica.

Assim, quando não se configura o estado de vulnerabilidade da mulher ou a opressão sistemática do homem, o resultado dos processos pode ser mais drástico do que o necessário.


Endereço da página: