Folha de S. Paulo


Cativeiros

A execução de reféns pelo Estado Islâmico parece obra de ficção, pelo absurdo, pela frieza, pelo espetáculo, e nos faz pensar na anatomia de um dos crimes mais hediondos que há: a extorsão mediante sequestro.

O criminoso subtrai com violência a liberdade de alguém e condiciona sua vida ao recebimento de uma vantagem econômica ou política que não depende da vontade da vítima. O cativeiro assusta, ameaça, tortura e traumatiza –ainda que a integridade física possa ser aparentemente preservada.

Aterroriza familiares e amigos. Encurrala quem tem o poder de decidir.

Quando praticado fora do ambiente de guerra, o sentimento privado de impotência também se multiplica. Avisar a polícia? Negociar? Pagar o que pedem?

Criminosos e policiais se movem no fio da navalha. Qualquer erro pode ser fatal. Há risco de enfrentamento. O desafio é para valer? Os sequestradores matarão mesmo o refém se o resgate não for pago? Devemos fechar os olhos para as eventuais arbitrariedades praticadas, no calor dos acontecimentos, para desarticular a quadrilha e salvar a pessoa?

O Brasil viveu ondas de sequestro. Entre setembro de 1969 e dezembro de 1970, grupos armados de esquerda sequestraram quatro diplomatas estrangeiros prometendo exercitar a "justiça revolucionária" (matá-los) se as condições não fossem cumpridas. Os generais cederam –em troca dos diplomatas foram libertados e banidos do país, ao todo, 130 presos políticos–, mas a história poderia ser diferente.

A partir de 1986, empresários, publicitários e celebridades foram vítimas de sucessivos e ruidosos surtos de sequestro com exigência de resgate patrimonial. A polícia se especializou. O Código Penal endureceu e, curiosamente, a Lei de Segurança Nacional que herdamos do regime militar se manteve com pena sensivelmente mais branda para a motivação política.

Não se confunde o crime de extorsão mediante sequestro com o chamado "sequestro-relâmpago": mais comum e sem planejamento, neste a vantagem é exigida da própria vítima, sem envolvimento de terceira pessoa. Estatísticas revelam número reduzido de ocorrências no Brasil se comparado ao de outros delitos graves (a Secretaria de Segurança Pública registra 40 casos em 2014 no Estado de São Paulo, tendo sido notificados, no período, 10.029 estupros), mas o sequestro se banaliza.

O episódio "The National Anthem", que inaugurou, em dezembro de 2011, a distópica série inglesa "Black Mirror", é desconcertante.

Sequestradores de uma festejada personagem da família real britânica fazem uma exigência bizarra: o primeiro-ministro deve manter relação sexual com uma porca diante das câmeras de TV, ao vivo e em rede nacional. A sobrevivência da princesa depende da humilhação despudorada do chefe de governo.

O pedido de resgate, com a jovem implorando dramaticamente pela liberdade, está no YouTube. Em poucas horas, o vídeo é acessado por mais de 18 milhões de visitantes, 10 mil tweets por minuto. A perplexidade paralisa a Inglaterra até o desenlace da trama.

Com o sequestro levado ao extremo da imaginação, "The National Anthem" zomba da política, da imprensa, do futuro e de nós. E mostra que o horizonte do terror é infinito.

lfcarvalhofilho@uol.com.br


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