Folha de S. Paulo


A insignificância das coisas

O Supremo retoma as atividades nesta segunda-feira e quer estabelecer critérios para o reconhecimento do princípio da insignificância em casos de furto.

Com o objetivo de fixar diretrizes para o Judiciário, sempre errante, o STF encaminhou ao plenário o julgamento reunido de três habeas corpus que buscam anular condenações exemplares: um rapaz pelo furto de par de sandálias, outro, por se apropriar de 16 bombons, e uma mulher, pela tentativa de se apoderar de dois frascos de sabonete íntimo. Em dezembro, o ministro Roberto Barroso votou a favor dos réus e o julgamento foi interrompido.

Muito embora a atitude dos condenados se encaixe na definição do furto ("subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel"), crime sem uso de violência, a insignificância do bem tornaria a conduta atípica: desaparece o fundamento para o trato penal da questão.

A conduta permanece ilícita no plano civil, mas o Estado perde legitimidade para perseguir a condenação criminal da pessoa. A controvérsia é relevante porque o princípio da insignificância não está expresso na lei e porque faltam parâmetros de valor econômico.

Juízes positivistas entendem que o pequeno valor da coisa furtada pode ensejar redução ou substituição da pena de prisão, e não inviabilizar a punição.

Para eles (muitos defendem a "tolerância zero" para a formação moral da sociedade), a tese da insignificância não passa de maquinação ideológica, política criminal. A punição de pequenos furtos tem caráter preventivo, inibidor. Como dar segurança ao comércio se for possível desviar, impunemente, bens de consumo considerados baratos, como livro, desodorante ou chocolate? E se algo de pequeno valor, como um anel de metal não precioso, tem significado sentimental?

Lembram que nem tudo que é insignificante é tolerável. A teoria do dano acumulado, por exemplo, justificaria a condenação: se o lançamento de pequena quantidade de poluente em um riacho não tem impacto no meio ambiente, se todos praticarem a mesma ação as águas estarão logo corrompidas. Para uma perspectiva mais liberal, a poluição insignificante é ilícita, mas deveria se resolver na esfera administrativa, com multas, interdições etc.

Para o reconhecimento do princípio da insignificância, alguns pressupostos têm norteado a jurisprudência: ofensividade mínima da conduta, inexistência de periculosidade social, reduzido grau de reprovabilidade e inexpressividade da lesão.

O STF deve enfrentar outras particularidades. A tese alcança modalidades diversas de delito, como o crime tributário, ou beneficia quem já tem antecedentes de pequenos furtos? Aplica-se ao furto qualificado, com pena de dois a oito anos de reclusão?

Anos atrás, a Folha revelou a prisão em flagrante de pai de família, em São Paulo, pelo furto qualificado (abuso de confiança) de coxa e sobrecoxa de frango da empresa em que trabalhava. Indefeso, ficou 16 dias trancafiado em cela de 12 metros quadrados com 25 detentos, exposto à violência. Qual dano é maior?

A decisão favorável do Supremo não terá o caráter de licença para o furto de pequenas coisas, mas é capaz de inibir o esforço estatal para punições inúteis e desproporcionais -às vezes, estúpidas.

lfcarvalhofilho@uol.com.br


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