Folha de S. Paulo


Filhos que interromperam entrevista do pai mostram como somos artificiais

Reprodução/Reprodução
Professor Robert Kelly ao lado de sua família: filhos interromperam entrevista ao vivo
Professor Robert Kelly ao lado de sua família: filhos interromperam entrevista ao vivo

Não deveria ter sido uma ocasião especialmente interessante. Tudo que aconteceu foi que um homem acomodado em seu escritório caseiro, na Coreia do Sul, concedeu uma entrevista ao vivo para a BBC, via Skype. Os filhos pequenos do entrevistado entraram no escritório, por trás dele, e apareceram por alguns segundos na câmera; depois, uma mulher chegou e os tirou de lá, e a entrevista prosseguiu.

Mas o vídeo desse pequeno incidente doméstico na casa do acadêmico Robert Kelly foi assistido mais de 100 milhões de vezes, em todo o planeta, causando muitas risadas, sarcasmo e comentários. Por dois ou três dias, a família Kelly se tornou famosa no mundo inteiro.

Por que o vídeo se tornou sucesso viral? Em parte porque as pessoas gostam de ver crianças bonitinhas aprontando quase tanto quanto gostam de ver gatos tentando entrar em caixas de papelão. Mas um motivo maior é que a cena mostrava a distância intransponível entre nosso eu profissional e nosso eu doméstico. A entrada em cena inesperada dos dois moleques sublinha uma verdade que em geral tentamos esquecer: o quanto a vida profissional é pomposa e artificial.

O caso de Kelly foi um exemplo extremo porque ele estava de terno e falando ao vivo na TV, ostentando a sisudez profissional que esperamos de nossos especialistas. Nada pode ser menos sisudo que um menino de macacão amarelo pulando por trás de um homem de terno; de fato, ver os filhos de Kelly entrando aos pulos no quadro parecia uma mancada profissional quase tão grave quanto se ele tivesse aparecido nu diante da câmera.

A distância entre os dois mundos ficou estampada no rosto de Kelly. No começo, ele ostentava a máscara que seu trabalho requer. Era o especialista, repleto de autoridade, um homem sério. Depois, a máscara escorregou para revelar uma pessoa diferente, um pai irritado sorrindo com paciência para sua filha. Em seguida, ao final de mais alguns momentos de embaraço consternado, ele parece ter conseguido recolocar a máscara.

A maioria de nós usa máscaras no escritório, quase que o tempo todo. O trabalho requer um código de comportamento que é preciso seguir. Envolve manter o controle, e uma dupla de crianças pequenas pulando por uma sala é mais ou menos o oposto disso. Estar no trabalho quer dizer que nos declaramos "apaixonados" sobre coisas que acreditamos serem importantes, mas a presença de uma criança pequena brincando torna difícil sustentar esse fingimento —as coisas sérias subitamente parecem risíveis.

Mas a despeito dessas verdades evidentes, a mais recente moda no campo da gestão —e talvez a mais idiota já inventada— é encorajar gestores a se comportarem como crianças pequenas. Na semana passada, a Swatch publicou seu balanço de 2016, com o tema "agora temos seis anos".

O balanço trazia fotos de todos os conselheiros da empresa aos seis anos de idade —uma ideia excelente, em termos visuais, porque eles eram todos consideravelmente mais bonitinhos, com essa idade, mas incompreensível sob qualquer outro ponto de vista.

A mensagem de abertura do presidente do conselho da empresa fala da alegria de construir castelos de areia, o que é ótimo, mas dificilmente desviará a atenção de até mesmo o mais preguiçoso dos investidores quanto à queda dos lucros da fabricante de relógios à metade de sua marca de 2015. A menos que o ponto da história fosse explicar que a empresa se saiu mal a esse ponto porque seus conselheiros e executivos estavam ocupados demais com seus baldinhos e pás.

Ainda mais absurdo é um livro que será lançado em abril, "Little Wins: the Huge Power of Thinking like a Toddler" [pequenas vitórias: o poder de pensar como uma criança]. Sir Richard Branson gosta da ideia, e escreveu no prefácio que "existe muita mágica no mundo, mas às vezes precisamos decrescer para experimentá-la".

Decrescer, explica Paul Lindley, o autor do livro, é uma excelente ideia para executivos, porque os torna mais confiantes, criativos, honestos, divertidos e persistentes.

Esses traços não batem muito com as características das crianças pequenas, em minhas lembranças, embora eu seja capaz de me lembrar de outras semelhanças entre uma criança de três anos e executivos - todas as quais deveriam ser evitadas. Crianças pequenas têm chiliques. Não gostam de dividir. Não ouvem. Sensatez não é sua característica mais notável. São extremamente egoístas e encaram as demais pessoas como objetos. E são péssimas em calcular margens de lucro.

As características de comportamento exibidas pelos filhos de Kelly consistiam em saltitar, pular e perambular pelo escritório com um andador para bebês —e nada disso me parece um bom exemplo para gestores. O ponto mais importante sobre essas atividades é que é melhor que sejam realizadas em uma sala na qual uma entrevista à BBC, ou trabalho sério de qualquer outra espécie, não esteja acontecendo.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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