Folha de S. Paulo


Eu preferiria ser engraxate a trabalhar para um banco

Na última quinta-feira (21), pela primeira vez em minha vida, fui ao engraxate. Acomodei-me em um banco diante de St-Mary-le-Bow, em Cheapside, e um homem se prostrou diante de mim e partiu para o trabalho, com sua graxa Kiwi, panos de lustrar e escovas.

Jamais havia me ocorrido fazer algo assim. Isso acontece porque não percebo que meus sapatos perderam o lustro, até que estejam tão vergonhosamente mal cuidados que trato de engraxá-los eu mesma. E além disso, há algo de desagradável na ideia de ter uma pessoa prostrada aos meus pés.

Quando eu trabalhava em Wall Street, no começo dos anos 80, lembro-me de ver homens de terno alinhados em cadeiras altas, lendo presunçosamente o "Wall Street Journal", enquanto outros homens de aventais sujos labutavam para cuidar de seus sapatos. Minha alma progressista do norte de Londres sofria com aquela imagem.

Mas quando, na semana passada, meu colega me contou que o engraxate que havia acabado de cuidar de seus sapatos parecia um dos trabalhadores mais satisfeitos que ele já havia encontrado, fiquei intrigada e decidi lhe fazer uma visita.

No começo daquela semana, fui a um jantar formal e me sentei ao lado de uma mulher que detém posto importante em um grande banco da City. Perguntei se ela gostava de ser executiva de banco —e a resposta foi uma longa litania de desilusão e sofrimento. Qualquer pessoa que esteja planejando uma carreira nos serviços financeiros, ela disse, deve ser completamente louca. Para começar, o peso da regulamentação está tornando a vida impossível. E há também a política, e o exibicionismo compulsório e interminável. O sexismo é endêmico. E a burocracia e a cultura de antes de tudo proteger o próprio traseiro estão tão enraizadas que qualquer mudança é impossível. Ela ganhou dinheiro suficiente, em suas duas décadas no ramo, para jamais precisar de emprego de novo, e estava se sentindo feliz porque acabara de entregar seu aviso prévio.

Mais ou menos na época em que ela começou no banco, um jovem estudante de pós-graduação francês apareceu em uma igreja a menos de 100 metros da torre de mármore e vidro em que ela trabalhava e pediu permissão para engraxar sapatos no pátio. Há quase 20 anos, ele chega ao local lá pelas 11h30min, monta um guarda-sol verde e se dedica a polir os sapatos dos executivos no horário de almoço da City.

Seria de imaginar que esse é o pior emprego do mundo. Engraxar sapatos é o que as crianças de Mumbai fazem quando ficam órfãs e precisam encontrar uma saída para não passar fome. É pior do que ser limpador de chaminés —pelo menos isso não requer ficar se arrastando aos pés de outra pessoa.

Mas Marc conta história diferente. Quando se mudou para Londres, no começo dos anos 90, sua esperança era trabalhar em mídia. Mas a companhia na qual ele fez estágio pagava zero, e por isso ele precisou bancar suas despesas no período engraxando sapatos. Depois de algum tempo, descobriu que a companhia de mídia era uma roubada; uma lata de graxa e uma escova de sapatos lhe propiciavam mais satisfação.

Enquanto ele escovava e lustrava minhas botas curtas pretas, perguntei o que exatamente o agradava tanto naquele trabalho. "Não preciso ser inteligente", ele disse. "Posso ser tão idiota quanto quiser. Não estou tentando impressionar pessoa alguma."

É um excelente argumento. Passei metade da minha vida tentando impressionar as pessoas —e é cansativo. A única coisa pior do que fingir ser inteligente é trabalhar com pessoas com fingem ainda mais efetivamente que você— o exato problema que minha colega de jantar estava enfrentando.

A segunda coisa boa quanto a ser engraxate, ele disse, era a satisfação do trabalho em si. Você toma um par de sapatos que perderam o brilho e, oito minutos mais tarde, eles estão reluzentes. É outra coisa que consigo compreender. Uma das melhores coisas quanto a ser jornalista —em lugar de executiva de banco— é a satisfação de produzir trabalho finito e que você pode ver.

Terceiro, e possivelmente o mais importante, é que engraxar sapatos, em marcado contraste com as finanças, dá satisfação aos clientes. Quando saí de lá, com as botas reluzentes, estava me sentindo melhor, mais inteligente, mais em controle. Fazer com que os outros se sintam bem é sempre uma fonte confiável de felicidade. É por isso que cabeleireiros e maquiadores ocupam posição mais alta na lista de profissões felizes do que os consultores de gestão e os advogados de grandes empresas. Como jornalista, também tento dar prazer aos leitores, mas não testemunho a diversão das pessoas com os meus artigos. No caso do engraxate, o prazer é instantâneo e está bem diante de seu nariz.

Quarto, o papo é agradável. De acordo com Marc, a maior parte das pessoas da City vive carente de conversas decentes, e gosta de contar ao engraxate toda espécie de coisas interessantes - e ocasionalmente indecorosas.

Por fim, ele é que decide seu horário. Por isso, engraxa sapatos na hora do almoço, quanto o movimento é forte, e trabalha como tradutor o resto do tempo. Não há gestão, não há política.

Só existe uma coisa melhor em trabalhar para um banco do que em ser engraxate, e é o dinheiro. Marc cobra 4,50 libras para engraxar um par de sapatos, o que significa que fatura cerca de 30 libras por hora.

Ele ainda não ganhou dinheiro suficiente para se aposentar. Mas isso não é problema, porque não sente a menor necessidade de parar.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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