Folha de S. Paulo


Se temos de ser espionados por apps, que eles pelo menos sejam espertos

"Lucy tem talento para a comunicação, ocasionalmente toma decisões por instinto, de preferência à lógica, e prefere as ideias mais amplas aos detalhes".

Como descrição sobre mim, admito que é boa. Passei toda minha carreira me comunicando, e por isso tenho a obrigação de ser boa nisso, a esta altura. Acabo de tomar uma decisão, em minha vida pessoal, que não só sei que é ilógica mas pode ser financeiramente catastrófica, mas vou seguir meus instintos. E quanto aos detalhes, a menos que eles sustentem minha argumentação, não gosto nem um pouquinho deles.

Mas o que perturba na avaliação de caráter acima é que ela não vem de alguém que me conheça; na verdade, não vem de uma pessoa. Foi produzida em um total de três segundos por um algoritmo desenvolvido por cientistas da computação que determinaram de que modo vasculhar a Internet em busca de todas as informações públicas sobre uma pessoa, e como transformá-las em um retrato instantâneo de sua personalidade.

Tendo permitido que o crystalknows.com me analisasse, digitei nele os nomes de alguns colegas e descobri que o serviço os resume com fantasmagórica precisão. Um colega colunista, que sei ser impaciente, audacioso e criativo, foi definido exatamente assim pelo Crystal. Alguns dos veredictos do app não eram tão precisos –mas para cada avaliação, o app informa seu grau de confiança quanto ao resultado; os casos nos quais a precisão era baixa eram no geral aqueles nos quais o serviço não contava com muitos dados nos quais se basear.

Isso tudo é muito divertido, mas o principal argumento de venda do Crystal não é oferecer diversão. É ajudar os usuários a se comunicarem melhor. Você vincula o app ao Gmail e, a cada vez que começa a redigir uma mensagem, ele o informará de qual é a melhor abordagem para aquele destinatário.

Acabei de enviar um e-mail a Drew D'Agostino, o fundador da Crystal Projects. Na parte inferior da minha tela, um botão verde alertava: "Seja sucinta", porque Drew não gosta de mensagens longas. Se eu estivesse escrevendo para outra pessoa, o conselho talvez fosse "seja casual" ou "seja formal".

De acordo com D'Agostino, o Crystal é a melhora mais importante a surgir para o e-mail desde o verificador ortográfico. Mas os blogueiros irritadiços não parecem bem impressionados, até agora. O app foi definido como "coisa de stalker", "repulsivo" e "sinistro". Algumas pessoas protestaram que não é agradável saber que completos desconhecidos estão procurando dados sobre você sem sua permissão, e formando opiniões instantâneas a seu respeito.

Mas nada disso me parece peculiarmente repulsivo –todos os dados envolvidos já estão em domínio público. E creio que prefiro que decisões sobre mim sejam tomadas com base em algum sistema do que com base em palpites, preconceitos e ignorância, como é o caso agora. Ao contrário da maioria dos apps, o Crystal resolve um problema genuíno. Não existem regras comuns quanto ao e-mail. Toda vez que escrevemos um e-mail, estamos no escuro sobre o que funcionaria melhor.

Seria possível dizer que um mundo pós-Crystal, no qual todas as mensagens que chegam ao meu endereço de e-mail fossem escritas no estilo que o app prescreve, talvez se prove tedioso. Mas não seria tão tedioso quanto é o caso sob o arranjo atual, sob o qual leio dezenas de e-mail a cada dia que começam com longas e inúteis fórmulas de cortesia, do tipo "espero que este e-mail a encontre bem". Se as pessoas soubessem o quanto odeio esse tipo de coisa, desistiriam. Seria uma economia de tempo para elas e uma economia de irritação para mim. Vantagem para os dois lados.

Uma queixa mais filosófica seria a de que, se todas as avaliações de caráter fossem feitas por máquinas, perderíamos nossa capacidade –mais nuançada– de avaliar pessoas. E porque somos passíveis de sugestão, não questionaríamos os resultados do app, mesmo que sejam baseados em não muita informação. É o famoso problema da "busca de confirmação".

Pode ser que isso tudo proceda, mas minha principal objeção ao Crystal é mais básica: ele não funciona tão bem quanto deveria.

Eu deveria ser a pessoa mais fácil do mundo, em termos de análise pelo Crystal: publico uma coluna pessoal a cada semana há 21 anos. Ainda que o app tenha mais ou menos acertado sobre minha personalidade, as sugestões que oferece sobre como as pessoas deveriam me abordar são piores que inúteis: "Use emoticons", é a primeira delas.

Eles devem estar brincando. Jamais usei um emoticon em minha vida, voluntariamente, e o uso deles por outros sempre me faz descontar pontos de QI do remetente. Ainda pior, o app diz que eu não me incomodo com os atrasos alheios. Uma vez mais: a avaliação não poderia ser mais incorreta. Sou obsessivamente pontual.

Minha fobia a emoticons e minha obsessão por chegar na hora não são coisas que um algoritmo precise deduzir a meu respeito. São fobias sobre as quais escrevi explicitamente, e muitas vezes. Assim, meu problema com o Crystal não é que ele esteja me espionando, mas que não esteja me espionando com suficiente entusiasmo.

No meu breve e-mail a Drew, perguntei sobre a precisão. "Oi Lucy. Obrigado pelo contato", ele respondeu, com isso cometendo duas mancadas de e-mail antes mesmo de chegar ao ponto. Drew em seguida me garantiu que a precisão está melhorando e que em breve os usuários poderão corrigir erros e definir preferências eles mesmos.
Enquanto isso, eis minha avaliação sobre o caráter do Crystal: ótima ideia; precisam se esforçar mais.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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