Folha de S. Paulo


Opinião: Apelo ao jargão sem sentido é sinal de decadência na Apple

Na segunda-feira passada (9), um anúncio de emprego foi postado no site da Apple. O cargo a ser preenchido: "Líder de Pensamento".

Eu sempre tentei imaginar o que exatamente um líder de pensamento passa o dia fazendo; tenho problema suficiente para liderar aquilo que eu penso e com isso nem consigo imaginar como deve ser difícil liderar os pensamentos alheios.

Estudei o anúncio, em um esforço para resolver a dúvida. O texto explicava que o emprego envolvia "dirigir a conceitualização, avaliação e execução de projetos críticos de informação de vendas, no prazo e dentro das expectativas de negócios".

É um texto que ofende, de diversas maneiras. Viola a regra de que "dirigir" em geral deveria ser usado apenas para descrever atividades que envolvem um volante; a trindade inicial de substantivos pomposos desgasta as energias, e quanto a "expectativas de negócios" –por que não dizer "orçamento" de uma vez?

E o anúncio tampouco responde à pergunta básica. E ler os outros 27 pontos descritivos só serve para confundir ainda mais.

O candidato perfeito, descubro, precisa ser capaz de "identificar pontos de integração com outras equipes e dirigir a alta resolução de questões transfuncionais". O que é um ponto de integração? Ou uma questão transfuncional? E alta resolução não é algo que tem a ver com fotografia?

Mais adiante, o anúncio especifica "experiência em colaboração e trabalho direto com recursos de negócios e informática". Estamos falando de recursos animados ou inanimados, no caso? Seria interessante saber.

O motivo para que eu me estenda tanto sobre esse lastimável exemplo de blablablá corporativo é porque ele vem da Apple.

Por anos apontei a Apple como exemplo solitário de uma grande empresa que sabia usar as palavras de um jeito bonito. Até mesmo os seus documentos jurídicos eram bem escritos. Meu favorito é uma peça produzida quatro anos atrás, determinando as condições para aquilo que a empresa estava preparada para vender em sua App Store:

"Rejeitaremos apps para qualquer conteúdo ou comportamento que acreditemos cruzar a linha. Você quer saber que linha? Bem, como disse um juiz da Suprema Corte certa vez, saberei quando a vir. E acreditamos que você também saberá quando cruzá-la", o texto afirmava.

Era uma definição tanto clara quanto engraçada –e ameaçadora do jeito necessário. Demonstrava aquilo que se pode fazer com palavras: se um advogado da Apple era capaz de escrever sobre um assunto seco e técnico de maneira que fazia um leitor desejar continuar lendo, não haveria necessidade de usar palavras feias e enganosas a fim de descrever qualquer coisa, pelo resto dos tempos.

O que explica por que o anúncio que busca um "Líder de Pensamento" incomoda tanto. Você poderia argumentar que estou exagerando com base em apenas um caso. Talvez alguém nos recursos humanos tenha passado por um dia ruim. Mas se você ler os anúncios para algumas das outras 600 vagas que a Apple está buscando preencher, descobrirá que há algo de mais sinistro em curso.

Uma das vagas é para alguém que projete baterias, o que aparentemente seria um trabalho simples de descrever. Mas o anúncio tem 22 requisitos, entre os quais "praticar capacidades excepcionais de documentação", o que eu significo tomar nota das coisas necessárias, e "contribuir positivamente para a comunidade de engenharia", o que entendo significa tratar os colegas bem.

Todo mundo sabe que anúncios de emprego são uma área que atrai a pior espécie de linguagem grandiloquente, especialmente quando passam pelo tratamento de um "headhunter" que requer de todo candidato que ele seja um "trabalhador de classe mundial".

Mas quando uma empresa não é capaz de descrever o que seu pessoal faz, e tampouco consegue explicar claramente quem ela deseja para preencher suas vagas, temo que haja problemas.

A competência que a Apple demonstrava até agora no uso das palavras certamente era parte de seu sucesso. Talvez a linguagem ajudasse a causar o sucesso, ou o sucesso causasse a linguagem.

As novas e feias palavras da companhia sugerem que ela cresceu demais e tornou-se corporativa demais, para se apegar às coisas que um dia a tornaram diferente. A Apple parece ter se tornado tão kafkiana quanto qualquer outra grande empresa.

Na semana passada, o jornal "Financial Times" publicou um anúncio de emprego de uma organização que ainda faz as coisas à maneira antiga.

O FMI (Fundo Monetário Internacional) está procurando por um diretor executivo assistente e, para explicar o cargo, recorreu a dois pontos apenas, dizendo que o trabalho envolvia parte administração e parte estratégia.

Para descrever o candidato procurado, o anúncio dizia que a pessoa deveria ser alguém que tivesse ocupado um posto importante no setor financeiro ou no serviço público –e que saber alguma coisa sobre Economia ajudaria.

No mundo altamente inflacionado da maioria dos anúncios de emprego, "diretor executivo assistente" sugeriria alguém que precisaria de um chefe até para fazer chá.

O Goldman Sachs tem tantos diretores executivos que carregá-los todos exigiria quatro Jumbos. Em contraste, o FMI tem apenas um desses diretores –Christine Lagarde– e o assistente se reportará a ela.

A pessoa não precisará provar paixão por pontos de integração nas questões transfuncionais –o que significa que existe uma probabilidade maior de encontrar a pessoa certa para o posto a ser preenchido.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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