Folha de S. Paulo


Pegadores de bolas demonstram o poder do treinamento

Enquanto Ivo Karlovic rebatia uma bola de tênis a 216 km/h na direção de Andrew Murray, na quadra central de Wimbledon na semana passada, me apanhei contemplando algo de imóvel por trás de suas costas. Dois meninos de cerca de 15 anos estavam parados em formação simétrica, completamente imóveis. Quando uma bola saía da quadra em sua direção, eles a recolhiam e a devolviam com rapidez e perfeita precisão na mão do jogador, e em seguida retomavam sua posição de estátuas.

Já que passei quase uma década tentando sem sucesso conseguir com que adolescentes recolhessem meias sujas do chão e as arremessassem pelo menos na direção geral do cesto de roupa para lavar, o desempenho dos pegadores de bolas me pareceu ainda mais notável do que o dos adultos equipados com raquetes.

A verdade é que existe uma fórmula para treinar os pegadores de bolas de Wimbledon, em funcionamento há décadas. Trata-se do último curso de treinamento na face da Terra que resiste a quaisquer concessões aos modernos métodos de gestão; e produz os melhores resultados que já presenciei.

Quatro meses antes do início do torneio, 700 adolescentes que aspiram ao posto de pegador de bolas aprendem a ficar imóveis, devolver bolas, olhar seus interlocutores nos olhos e andar com as camisetas para dentro do calção. Cada um deles é conhecido pelo número que carrega na camiseta -nada dessa frescura de chamar uma pessoa pelo nome. A expectativa é de que memorizem as regras e compreendam que segui-las não é opcional. Apenas um terço dos candidatos passa pela seleção; absenteísmo, mesmo por motivo de doença, não é tolerado.

Em troca do tempo, esforço e dedicação que emprestam ao torneio, os pegadores de bola recebem zero em pagamento. Não recebem nem sequer um agradecimento. Quando devolvem a bola a Karlovic, o tenista não se volta para eles e diz "ótimo trabalho" a fim de alimentar sua autoestima. Os jogadores os ignoram. Os pegadores de bolas compreendem que é seu papel manter a invisibilidade, fazer parte da paisagem. Não podem nem mesmo se divertir assistindo aos jogos.

No papel, tudo isso soa muito pouco atraente. Mas metade dos alunos de nona e 10ª séries nas escolas do sudoeste de Londres dariam até um braço pela oportunidade de trabalhar no torneio -ainda que, sem um braço, viessem a se tornar menos úteis em quadra.

Talvez você acredite que não há mistério nos motivos de um adolescente comum, viciado em Facebook, para aspirar a um posto como pegador de bolas em Wimbledon: é um trabalho que os aproxima não só dos reis do esporte mas da família real propriamente dita. Também é uma oportunidade de aparecer na televisão, ainda que todos pareçam idênticos em seu uniforme azul marinho; o mais orgulhoso dos pais teria dificuldade para reconhecer seu filho em meio ao grupo.

Mas suspeito que haja algo de mais importante em ação, ao mesmo tempo. O motivo é fazer parte de algo maravilhoso. É compreender que uma instituição valiosa depende do comportamento perfeito de todos que trabalham para ela. O treinamento draconiano não é um obstáculo, mas um atrativo. Quanto mais severas as regras, mais a instituição se leva a sério, e portanto maior a glória em ser parte dela.

No entanto, essa espécie de treinamento, baseado em orgulho, obediência e anonimato, não só saiu de moda no mundo dos negócios como desapareceu sem deixar rastros. Na semana passada, recebi uma pesquisa demonstrando que nem mesmo a pontualidade é vista como valiosa, hoje em dia. Três quartos dos chefes aparentemente não se preocupam caso um funcionário chegue meia hora atrasado. Essa flexibilidade é "excelente notícia para todos os trabalhadores", de acordo com a Mozy, a companhia que organizou a pesquisa. Mas será que flexibilidade é mesmo tão boa? E quanto à tendência que costuma acompanhá-la, a individualidade? Os pegadores de bolas são mais que capazes de realizar o melhor trabalho possível sem ela. Será que os trabalhadores de escritório não deveriam ser capazes do mesmo?

Nos escritórios modernos, a individualidade se espalhou a tal ponto que atrapalha o trabalho. Na semana passada, recebi um press release chato sobre uma companhia de gestão de patrimônio, e quando meu cursor passou por sobre a mensagem a caminho de exclui-la, saltou uma foto de uma loira fazendo biquinho. Era a assistente de relações públicas -uma simples peça na engrenagem, para todos os efeitos- que havia encaminhado a mensagem, e dela constava não só o seu nome mas uma foto de seu rosto. Com certeza, mesmo no departamento de relações públicas deve haver um chefe rigoroso o bastante para dizer que o importante é o trabalho, que a empresa é maior que seus funcionários, e que todos deveriam se orgulhar de serem componentes invisíveis de uma máquina bem azeitada.

Talvez eu esteja esperando demais de um departamento de relações públicas; e certamente não devo ter expectativas quanto a meias recolhidas. É fácil recordar duas tradições excelentes e válidas demonstradas pelo recolhimento imediato de meias sujas: a de manter a casa limpa e a de dividir igualmente as tarefas domésticas. O problema é que os adolescentes comuns de 15 anos não têm interesse em sustentar nenhuma das duas.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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