Folha de S. Paulo


Criadora de 'Transparent' provoca em 'I Love Dick'

A obra de Jill Soloway é gosto adquirido, como foie gras e as canções de PJ Harvey. De uma intensidade que nem todos apreciarão. Para os que se deixam fisgar, porém, o encantamento é irreversível.

Assim é em "I Love Dick", um drama epistolar com toques cômicos que a autora do sucesso de crítica "Transparent" (2014-17) fez, mais uma vez, para a Amazon.

Amazon Studios/Divulgação
Kevin Bacon em cena de 'I Love Dick
Kevin Bacon em cena de 'I Love Dick', série da Amazon na qual vive um artista excêntrico

Diferentemente de sua obra mais conhecida, que se tornou a vitrine maior do serviço de vídeo da varejista on-line, "I Love Dick", no ar desde maio, não é uma unanimidade.

Entre arroubos laudatórios em algumas resenhas e críticas desconcertantes em outras, a série recebeu do público uma nota 5,7 no site especializado IMDb ("Transparent", sobre uma família disfuncional cujo pai se revela transgênero, tem uma avaliação de 7,9).

É, sem dúvida, um "trabalho menor" de uma roteirista cujo interesse maior são as intimidades e o lado B do cotidiano. Não por falta de charme nem de ousadia.

Baseada no livro semiautobiográfico lançado em 1997 pela artista e romancista Chris Kraus, "I Love Dick" -um trocadilho sem-vergonha entre "eu amo Dick", o personagem, e a frase em inglês para "eu amo pinto"- explora a obsessão de uma aspirante a cineasta por um escultor reverenciado metido a cowboy solitário.

A Chris da série é vivida com graça por Kathryn Hahn, que já trabalhara com Soloway em "Transparent". Casada com um acadêmico que ganha uma bolsa no instituto de arte de Dick para escrever sobre o Holocausto, Sylvere (Griffin Dunne), ela se muda para uma cidadezinha do Texas habitada por hipsters, intelectuais e artistas em busca das próprias identidades.

O Dick da série, reimaginado em relação ao livro, é feito pelo indefectível Kevin Bacon, um ponto de conforto em um drama que peca pelo excesso de estranhezas.

É ele que desperta a libido de Chris e Sylvere, anestesiada após anos de casamento, e que vira alvo de uma série de cartas da protagonista sobre tesão.

A história importa menos que os personagens aqui, e menos ainda que os diálogos, um exercício de pornografia da palavra para tratar do desejo feminino cujo ápice é atingido no quinto episódio.

É nele que a produtora e sua corroteirista Sarah Gubbins brilham, desfilando pequenos monólogos de quatro personagens de identidades bastantes distintas sobre seu amadurecimento sexual.

O texto soa honesto e provocador como raras vezes um texto sobre sexualidade feminina pode soar na TV ou no teatro ou no cinema (sem nada do tom coleguinha de "Sex and the City", "Girls", por exemplo).

Mesmo Soloway, cheia de tiradas cortantes sobre o quão difícil é ser artista mulher em um meio ostensivamente masculino, no entanto, escorrega ao apresentar sua Chris como a garota linda, desengonçada e superficial (a "manic-pixie-dreamgirl") de tantas comédias esquecíveis.

Para não nos esquecermos, talvez, de quão persistente é esse ranço.

Os oito episódios de "I Love Dick" estão disponíveis no serviço Prime Video da Amazon


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