Folha de S. Paulo


Premiada no Globo de Ouro, 'Atlanta' desponta como 'anti-Friends'

A certa altura de "Atlanta", recém-premiada com o Globo de Ouro de melhor série cômica, um personagem, negro, é interpelado pelo vizinho de estande em uma academia de tiro, branco, inconformado com o fato de ele usar o desenho de um cachorro como alvo. "Você é psicopata? Meu filho podia estar aqui vendo isso!".

Em seguida, um homem de ascendência árabe interrompe a discussão para dizer que os EUA merecem ser alvo de uma revolução. O dono da academia, branco, expulsa apenas o sujeito do desenho de cachorro; não o que leva uma criança ao local; não o que fala em sangue. A cena tem um ar corriqueiro e, apesar do óbvio conteúdo racial, é sutil em estereótipos.

Com esse humor cáustico e naturalista, a comédia criada e estrelada por Donald Glover (de "Community"), 33, conquista aos poucos o espectador.

Fox/Divulgação
Donald Glover, premiado com o Globo de Ouro, como o produtor musical Earn em
Donald Glover, premiado com o Globo de Ouro, como o produtor musical Earn em "Atlanta"

Com episódios curtos (25 minutos) alinhavados por diálogos inteligentes e atuações bem calibradas –Glover também foi premiado como ator–, "Atlanta" faz parte de um subgênero que tem encontrado sucesso ao misturar comédia e drama e investir na verossimilhança e na humanidade dos personagens.

Aí podem ser colocadas "Transparent" (Amazon) e "Girls" (HBO), mas o texto contido de Glover a torna menos contundente do que a primeira e menos histriônica do que a última. É uma provocação que se desenha aos poucos e se instala sem causar alarde.

Com um elenco quase todo negro, "Atlanta" conta a história de Earn Marks (Glover), que deixou a prestigiosa Universidade de Princeton para voltar à sua cidade natal, a do título, e trabalhar com música.

Nada é fácil: seu relacionamento tropeça; ele mal consegue pagar as contas da casa e da filha pequena; e a volatilidade do cenário musical não garante que o sucesso do primo que ele passa a empresariar, Paper Boi (Brian Tyree Henry), perdure ou sequer lhe traga conforto.

A grande jogada de Glover, que afirmou em entrevistas ter interesse exatamente na banalidade do dia a dia, foi criar personagens que inspiram empatia e cujas pequenas desgraças cotidianas são postas como parte intrínseca e inescapável da vida de muita gente.

Nenhuma grande tragédia, nenhum grande trunfo.

Quando uma das personagens evita um teste de uso de drogas na escola onde trabalha, ela ouve da diretora que "o sistema não é feito para as crianças se darem bem", e que "todo mundo precisa de alguma coisa para segurar a barra de dar aula para aqueles meninos". É tão engraçado quanto triste ou provocador.

De cenário, há uma cidade majoritariamente negra onde ainda prevalece uma espécie de linha invisível entre "bairros de negros" e "bairros de brancos" e a tensão é latente, quase palpável.

Trazer leveza a temas assim, em um momento em que a sociedade americana se pergunta como tratá-los, de fato é algo digno de prêmio.


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