Folha de S. Paulo


Apesar de modesto, thriller nacional da Netflix '3%' guarda boas surpresas

Divulgação/Netflix
O elenco da série
O elenco da série "3%" em cena

Ainda que o figurino equivocado e a direção de arte irregular afugentem o espectador de "3%", a primeira série da Netflix com produção brasileira, vale resistir ao impulso inicial e acompanhá-la até o fim.

Após um episódio inicial piegas, a série de ficção científica sobre um paraíso hipotético para onde são enviados os 3% da população aprovados em um processo de seleção tão rigoroso quanto dúbio mostra bom ritmo e um enredo que amarra, para além da crítica social óbvia, questionamentos mais amplos sobre religião e "meritocracia".

A estrutura de gincana pela ascensão a uma casta mais elevada ajuda a prender a atenção e a provocar empatia, mas é a história dos personagens que se desenrola a partir dela que mostra do que a série realmente trata: um embate de ideologias.

No thriller dirigido por César Charlone e escrito por Pedro Aguilera, porém, não há vencedores entre os que defendem uma sociedade mais igualitária e pela "Causa" são capazes de fazer qualquer coisa e entre aqueles que acreditam na suposta meritocracia filtrada por um "Processo" de seleção sem volta.

Com uma carreira prolífica como diretor de fotografia (é ele nas câmeras de "Cidade de Deus") e tendo dirigido o longa "O Banheiro do Papa", Charlone mostra um timing eficiente, desfazendo aos poucos um aparente maniqueísmo para mostrar que a radicalização é daninha, sempre. Não estamos diante de mais uma distopia, um subgênero que apareceu nos últimos anos nas brilhantes "Mr. Robot" e "Black Mirror", mas de uma utopia.

O tal Mar Alto para qual os candidatos à seleção querem ascender é um lugar supostamente perfeito, livre de males humanos como violência, desigualdade e pestes; uma promessa para a qual só se tem acesso após uma vida de provações, às custas da manutenção de uma maioria em desgraça, e a qual ninguém sabe ao certo como funciona. Nada muito diferente de uma religião.

À frente do elenco está o ótimo João Miguel ("Cinema, Aspirinas e Urubus"), como Ezequiel, o homem que dirige o Processo e define quem é apto ou não a participar dessa sociedade mais elevada. Veteranos como Sérgio Mamberti, Zezé Motta e Celso Frateschi fazem pontas.

No grupo de jovens que tenta se classificar, destacam-se a idealista Michele (Bianca Comparato, de "Sessão de Terapia"), o resiliente Fernando (Michel Gomes) e a rebelde Joana (Vaneza Oliveira). São arquétipos fáceis, mas as interpretações são convincentes a ponto de tornar ignoráveis as falhas do fraco elenco de apoio.

Num crescendo que coloca em xeque as convicções dos personagens, a série culmina em um episódio final surpreendente. "3%" pode não ser a melhor ficção científica, e está longe de ser a produção mais rica. Mas é boa dramaturgia para entreter e traz algo de novo. Utopias e preconceitos fora, enuncia um filão promissor para produções independentes brasileiras.

"3%" está disponível na platofrma de streaming Netflix


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