Folha de S. Paulo


O que 'Stranger Things', Trump e filé com fritas têm em comum?

Voltando a "Stranger Things", a série da Netflix que reverencia os filmes de suspense adolescente dos anos 1980 e da qual parece ser inevitável gostar, um incômodo surgiu: somos reféns dos algoritmos usados por produtores e distribuidores de conteúdo para acertar nossas preferências e oferecer apenas coisas exatamente como desejamos?

A tecnologia não é o problema em si –a Netflix não a comenta, embora já tenha empregado fórmulas que detectam hábitos do espectador para costurar "House of Cards", como David Carr (1956-2015) apontara no "New York Times" já em 2013.

Ela permite, afinal, explorar com amplitude algo que a Globo já buscava ao sondar o público para decidir o rumo de uma novela. E, ao garantir sucessos, torna-se rentável.

O problema é essa amplitude e sua frequência.

Assistir a algo com tudo aquilo de que gostamos, evocar a nostalgia de um período de inocência despretensiosa que parecia para trás é uma aposta segura e reconfortante.

Mas a mera colagem ostensiva de cenas pescadas de um manancial de referências de quem cresceu nos anos 80/90, o alvo do canal, parece apenas uma manipulação emocional do público das mais sorrateiras (Matt e Ross Duffer dizem ser uma homenagem, e os fãs não toleram quem desconfie que não).

Não que referências não sejam bons ingredientes para um filme, série ou livro. Com habilidade excepcional, as irmãs Wachowski lotaram sua cinessérie "Matrix" delas.

O repertório das Wachowski, porém, era muito mais extenso e sofisticado que o dos Duffer. "Matrix", com sua narrativa provocante e suas cenas de ação inovadoras, vai muito além das iscas para a memória.

O sucesso de "Stranger Things", por sua vez, faz lembrar o lamento de uma amiga que, trabalhando para um restaurante premiado pela criatividade dos pratos, viu o estabelecimento incluir filés e massa no cardápio para agradar ao público médio e não fechar as portas.

As pessoas queriam estar no restaurante da moda, acompanhar as tendências, comentar. Mas não queriam ousadias, apenas filés.

Num segundo momento, o abuso das fórmulas para gerar a nova-série-incrível-da-última-semana remete ao discurso do presidenciável americano Donald Trump. Não às propostas ou ideias, veja bem, mas à forma de falar, talhada para agradar a um determinado grupo.

Um estudo recente da Universidade Carnegie Mellon (EUA) sobre retórica mostrou que o restrito vocabulário do republicano se equipara ao de uma criança de 12 anos, abaixo do de seus antecessores.

Trump, experimentado em comunicação, sabe o que faz. Na política, busca-se a assimilação instantânea, o eco entre milhões que preenche ansiedades em troca de votos.

O conhecido filé no prato, que para a maioria precisa satisfazer, não instigar, tampouco será problema.

Já restringir entretenimento e arte ao repertório infantil, ao conforto do que se conhece, é fatal.


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