Folha de S. Paulo


Fanático não quer fazer valer um ideal, e sim purificar o mundo a ferro e fogo

Maíra Mendes/Editoria de Arte/Folhapress
Maira Medes 20.ago.2017

São apenas 136 páginas, o que pode fazer com que o pequeno volume passe despercebido, em meio à gôndola da livraria, ao olhar mais desatento. Colocada na prateleira, ladeada por outros lançamentos, a publicação também chama pouca atenção devido à lombada fina, de apenas um centímetro de largura.

A despeito disso, trata-se de um grande livro. Grande e necessário, deve-se realçar.

No momento em que assistimos, estarrecidos, às cenas de ódio racial em Charlottesville; no instante em que testemunhamos, envergonhados, um imigrante sírio vendedor de esfirras ser hostilizado por um brasileiro armado de pau em Copacabana; em um tempo no qual se vociferam, sem pudores, agressões e preconceitos nas redes sociais e nas caixas de comentários da internet; a leitura de "Mais de uma Luz: Fanatismo, Fé e Convivência no Século 21", de Amós Oz, torna-se imprescindível.

São três breves ensaios, escritos por um dos mais brilhantes e influentes escritores contemporâneos. No primeiro deles, Oz enfileira uma série de instigantes reflexões a respeito da intolerância tão presente em nossos dias. "O fanático nunca entra em um debate. Se ele considera que algo é ruim, seu dever é liquidar imediatamente aquela abominação", escreve o autor. "Todos os tipos de fanáticos tendem a viver num mundo em preto e branco. Num faroeste simplista de mocinhos contra bandidos. O fanático é na verdade um homem que só sabe contar até 1."

Segundo Oz, por várias décadas, a lembrança dos horrores provocados pelas múltiplas faces do extremismo ao longo do século 20 –dos gulags soviéticos aos campos nazistas de extermínio– fez com que os instintos dos maníacos ideológicos refluíssem e evitassem se declarar à luz do dia. "Durante algumas dezenas de anos, racistas se envergonhavam um pouco do seu racismo, quem estava cheio de ódio reprimia um pouco o seu ódio, e os redutos do fanatismo no mundo controlavam um pouco suas manifestações."

Com o esquecimento já pairando em torno das grandes e recentes tragédias humanas, aliado à cínica negação histórica dos males provocados por toda espécie de autoritarismo, abriram-se as comportas da desfaçatez e da fúria contra grupos socialmente vulneráveis. Em nosso caso específico, poderíamos enumerar negros, mulheres, indígenas, quilombolas, homossexuais, refugiados, migrantes e deserdados da terra em geral.

"A vacinação parcial que recebemos está se esgotando; ódio, fanatismo, aversão ao outro e ao diferente, brutalidade revolucionária, o fervor de 'esmagar definitivamente todos os malvados mediante um banho de sangue', tudo isso está ressurgindo", lamenta Amós Oz.

Afinal, para o olhar de antolhos do fanático, não se trata de fazer valer uma ideia ou um ideal, mas de querer purificar o mundo a ferro e fogo, exterminar a diversidade, converter os malditos infiéis e, constatado o fracasso prévio da "missão sagrada", dizimar o oponente.

O fanatismo produz a infantilização do debate. Em contrapartida, a infantilização do debate retroalimenta o fanatismo. Nesse quadro, o apagamento da fronteira entre política e entretenimento não é gratuita.

Oferecer respostas simplistas para problemas complexos faz parte do jogo sujo. Apontar determinado grupo como único culpado por todos os males do mundo ou de um país, idem. O culto à personalidade, o deslumbre pela celebridade, a busca pelo líder histriônico que salvará a pátria, mais ainda.

No segundo ensaio do livro, Amós Oz, que é judeu, disserta sobre o caráter do povo judaico e argumenta que todos os mandamentos que regem a fé e a cultura de sua gente poderiam ser resumidos em uma só sentença: "Não causarás a dor". Do mesmo modo, o humanismo que o autor professa estaria condensado no reconhecimento do direito à diferença.

Mais De Uma Luz
Amós Oz
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"Somos diferentes uns dos outros não porque alguns de nós ainda não enxergam a luz, mas porque o que existe no mundo são luzes, e não uma só luz", propõe Oz, que no ensaio que fecha o volume critica o regime de opressão e o domínio israelense sobre os territórios ocupados na Palestina, propondo um acordo de concessões mútuas para se buscar alguma saída para o conflito na região. Algo que passaria, necessariamente, pelo reconhecimento da riqueza milenar da cultura muçulmana.

"O fanático é um ponto de exclamação ambulante. É desejável que a luta contra ele não se expresse como outro ponto de exclamação a enfrentar o primeiro", adverte Oz.


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