Folha de S. Paulo


Breves observações a respeito do passo a passo da escrita de não ficção

Maíra Mendes/Editoria de Arte/Folhapress
Maíra Mendes 23.jul.2017

É comum leitores me abordarem, presencialmente, por e-mail ou mesmo por comentários em redes sociais, pedindo "dicas" de como escrever um livro de não ficção. Em geral, fico embaraçado, sem ter o que responder.

Quando insistem, gaguejo, mudo de assunto, eventualmente me faço de surdo, no máximo solto duas ou três platitudes. Temo, por vezes, parecer arrogante, mal-educado ou mesquinho, receio aparentar estar escondendo o ouro por algum suposto tipo de avareza profissional.

Não se trata disso. Apenas acredito que não existam fórmulas prontas, receitas pré-fabricadas, esquemas infalíveis para se arquitetar uma narrativa biográfica, por exemplo.

Como jornalista, costumo dizer que meu método de trabalho é essencialmente o do repórter. Escrever livros de não ficção, para mim, é exercer a reportagem em sua plenitude, alforriado do duplo grilhão que incide sobre a prática do jornalismo cotidiano: o sufoco do tempo e a coerção do espaço.

Em vez de algumas poucas horas para apurar uma história e de minguados parágrafos para contá-la, o escritor de um livro do gênero precisa construir condições objetivas para dispor de vários anos dedicados a uma única pauta e de centenas de páginas para desenvolvê-la.

Aproveito a oportunidade de estar neste momento em uma semana de férias no meio do mato, no alto da Mantiqueira, sem sinal de telefonia móvel e sem internet –portanto momentaneamente alienado e alheio ao que está acontecendo no mundo que existe para além da estradinha de terra que agora avisto da janela do quarto–, para alinhavar breves observações a respeito do tema.

Aqui não vai nenhuma pretensão de escrever o guia definitivo da escrita de não ficção, um manual de autoajuda para candidatos a autores de biografias e obras afins. Assumo o risco de cair na obviedade.

Em primeiro lugar, na fase de pesquisa, faz-se necessário ler tudo o que de relevante já se escreveu sobre o assunto escolhido. Dependendo do caso, isso pode significar uma cordilheira de livros direta ou indiretamente relacionados ao objeto. O garimpo em jornais de época também é imprescindível, tarefa hoje facilitada pela consulta on-line na hemeroteca da Biblioteca Nacional.

O passo seguinte –e mais excitante– é respirar a poeira dos arquivos públicos e privados, em busca de cartas, bilhetes, certidões, testamentos, receitas médicas, enfim, qualquer pedaço de papel que sirva como mais uma peça do grande quebra-cabeças que representa qualquer história individual ou coletiva.

Filmes, fotos, caricaturas, charges, músicas, anúncios publicitários, jingles, tudo deve ser encarado como fonte. Contudo, sabendo-se: não existe informação desinteressada. Todo documento foi ou é produzido a partir de determinado viés ou campo de interesse. Nem sempre vale o que está escrito. Papéis, às vezes, mais despistam do que revelam. O sentido, por vezes, está na entrelinha, subjacente ao texto.

Com base nesse material prévio, parte-se para a fase de entrevistas com protagonistas ou testemunhas oculares das cenas que se pretende reconstituir.

Mais uma vez, recomenda-se boa dose de ceticismo: a memória é seletiva e, por vezes, construída. Haverá versões discordantes, variantes desencontradas, pontos de vista inconciliáveis. É imperioso dar ouvidos a todos, sem confiar integralmente em ninguém. No final, a multiplicidade de vozes conferirá a polifonia indispensável à futura narrativa.

O grande desafio é saber estruturar o cipoal de informações, estabelecer relações entre elas, hierarquizar conteúdos, separar o relevante do acessório, para então se construir a espinha dorsal da história.

Só começo a escrever um livro quando já planejei, por exemplo, o número total de capítulos e as tensões internas que cada um deles conterá. Aqui, vale atentar para as lições dos antigos folhetins: nenhum capítulo deve se encerrar em si mesmo, mas deixar questões em aberto, lançando ganchos que convidem o leitor a seguir na trama.

A fase da escrita de não ficção, entretanto, mereceria outra coluna à parte. Quem sabe, eu venha a escrevê-la, caso a descida da serra e a emergência do noticiário não me imponham temas mais urgentes. E, não, este parágrafo não é um gancho narrativo. É a mais sincera confissão de desalento e angústia. No cenário brasileiro contemporâneo, um colunista de jornal vive em sobressalto. Sobe a Mantiqueira e não tem nem mesmo a garantia de que, quando voltar, ainda haverá um país lá embaixo sobre o qual se possa escrever.


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