Folha de S. Paulo


A ciência dos profetas da chuva

Ele tem 78 anos e a pele tostada de sol. No registro do cartório, deram-lhe o nome de Francisco Quintino dos Santos. Desde criança, por causa da labuta cotidiana com o gado, todos do lugar o conhecem mesmo como Chico Leiteiro. Muitos dali preferem, contudo, com sincera deferência, tratá-lo pela qualificação de "profeta".

O termo, nesse caso, contrasta com o semblante sereno daquele homem pequenino, de sorriso fácil e candura agreste. Nada nele lembra a imagem estereotipada dos místicos sertanejos e dos antigos videntes das Escrituras, a barba desgrenhada, as longas madeixas sobre os ombros, os olhos esbugalhados voltados para o inefável, a túnica amarrada à cintura por uma corda.

Chico Leiteiro veste-se como qualquer sertanejo de Quixadá, cidade do interior cearense, a 167 quilômetros de Fortaleza: chapéu de palha à cabeça, chinelo de couro nos pés, camiseta branca de algodão, calças de tecido barato. "Desde que eu tinha dez anos de idade, o pessoal já me chamava de profeta", diz. "Ainda era menino quando aprendi, com meu pai, a ler no grande livro da natureza."

Maíra Mendes/Folhapress
Ilustração da coluna Lira Neto de 11.jun

Ele não está sozinho. Pelo sertão adentro, existem dezenas de outros desses oráculos caboclos, anciãos que a cada começo de ano são inquiridos pela vizinhança a respeito do prenúncio e da magnitude do próximo "inverno" (palavra pela qual os cearenses se referem à quadra anual chuvosa, situada entre os meses de fevereiro e maio). Em uma terra onde a quantidade de água que cai do céu ainda é decisiva para se estabelecer o limiar entre a fartura e a miséria, o sustento e a fome, a vida e a morte, os chamados "profetas da chuva" são respeitados como imparciais mensageiros, seja do júbilo, seja da penúria.

Na verdade, eles não são magos, adivinhos, estafetas do Além. São homens profundamente sensíveis, muitos deles analfabetos, mas capazes de ler e interpretar os sinais deixados pelo comportamento de plantas e bichos. Se formigas migram ribanceira acima, mudando o formigueiro para longe das margens de rios e açudes, vaticina-se boa chuva. Contudo, se aranhas armam as teias ao rés do chão, pressagiam-se sortilégios. Mandacarus e umburanas carregadas de flor, revoadas de borboletas do norte para o sul, cupins criando asas, sapos coaxando em noites de quentura: sinais infalíveis de abundância.

O repertório dos profetas da chuva e de toda essa surpreendente meteorologia popular faz parte de uma tradição de milênios, construída na observação minuciosa das filigranas do mundo natural, no exame da conduta dos ventos, na observação do voo dos insetos e das aves migratórias, na análise da floração sazonal de certas espécies vegetais. São saberes repassados de geração a geração, nos trânsitos e intercursos orais de uma cultura que, ao contrário da razão ocidental, não promoveu a clivagem entre homem e natureza.

Numa época em que os meteorólogos dispõem de imagens de satélite e estimativas traçadas por modelos matemáticos, há quem desdenhe a palavra dos profetas nordestinos da chuva como fenômeno pitoresco, mero folclore, arcaísmo de um povo supersticioso, alheio às luzes civilizatórias da moderna ciência. Nada mais errôneo. Novas disciplinas científicas, como a biometeorologia e a microclimatologia, buscam entender alterações fisiológicas nas plantas decorrentes de variações infinitesimais na umidade no ar. Pesquisadores investigam também como insetos e anfíbios podem se mostrar animais sensíveis à mínima oscilação nos padrões atmosféricos.

"Basta saber ver", nos ensina, com sua ciência cabocla, Chico Leiteiro. Quem dera, uma racionalidade mais ampla, baseada na diversidade epistemológica do mundo, talvez nos devolvesse também a capacidade de decifrar e traduzir o livro aberto da natureza. Mas, ao contrário disso, a separação entre cultura e natureza nos conduziu a um estágio alarmante no qual a ciência, compreendida como um processo acumulativo e predatório, ameaça agora a própria sobrevivência do planeta.

PS: Os profetas da chuva se reúnem anualmente, em Quixadá. No encontro de 2017, Chico Leiteiro previu para o sertão cearense chuvas bem superiores às dos últimos cinco anos (todos de seca), mas ainda inferiores à média histórica. A Fundação Cearense de Meteorologia divulgará os índices oficiais da quadra chuvosa na próxima semana. Os dados objetivos e os números prévios parecem indicar que Chico, mais uma vez, acertou no prognóstico.


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