Folha de S. Paulo


Parecem urgentes os termos da canção: 'Demarcação já!'

Maíra Mendes/Folhapress

Na pequena clareira no meio da selva, minha filha Alice, 7 anos, observava com atenção as palavras e gestos de Irê-miri, o índio tukano que nos servia de guia na trilha pela floresta amazônica.

Minutos antes, a bordo do navio que nos transportava pelas águas caudalosas do rio Negro, Alice apontara para o arco e flecha emoldurados na parede da cabine. Curiosa, indagara: "Pai, como os índios conseguem fazer coisas assim?". Parecia extasiada diante da beleza do artefato. Ao mesmo tempo, nascida na era dos celulares e tablets, mostrava-se intrigada com a perfeição de um instrumento produzido sem ajuda da alta tecnologia.

A certa altura da excursão mata adentro, como se tivesse conhecimento prévio da pergunta de minha filha, Irê-miri estancou o passo. De modo aparentemente aleatório, recolheu alguns gravetos, removeu pequenos cipós das árvores que nos rodeavam e, diante dos olhos cintilantes de Alice, confeccionou um arco e flecha. Mostrou então como o utensílio funcionava, numa breve demonstração de tiro ao alvo. Em seguida, convidou os integrantes do grupo que o acompanhava a fazer o mesmo.

Alice, claro, apresentou-se como voluntária. Empunhou o arco com a mão miúda, segurou firme a seta com a outra. Na primeira tentativa, não conseguiu distender a corda de maneira adequada. A flecha caiu, inerte, junto aos seus pezinhos. Porém, logo na segunda investida, o graveto transformado em projétil saiu sibilando entre o verde da floresta.

Desde aquele momento, percebi que minha filha entrara em sintonia com Irê-miri. No restante da caminhada, fez questão de acompanhá-lo de perto, seguindo-lhe os passos, colada aos seus calcanhares. Ela, que desde muito pequenina nos diz que será bióloga quando crescer, não perguntava nada. Apenas ouvia atenta as explicações do guia que, ao longo do percurso, identificava cada som da floresta, nomeava os pássaros pelo canto, comentava sobre o comportamento de bichos e plantas, advertia-nos a respeito de onde era seguro pisar e pôr a mão, distinguia as folhas venenosas das que serviam de remédio, revelando assim as minúcias de uma paisagem superlativa.

A cada informação, eu constatava o enlevo de Alice e a minha colossal ignorância de homem dito civilizado. Esta, sem dúvida, será a impressão mais duradoura que guardarei como convidado do cruzeiro literário "Navegar é Preciso", promovido na semana passada pela Livraria da Vila.

Durante cinco dias, seis autores -João Paulo Cuenca, Marcia Tiburi, Mario Prata, Matthew Shirts, Monja Cohen e eu- nos revezamos no auditório do navio que singrou as águas escuras do rio Negro, em incursões por igarapés e comunidades ribeirinhas, com direito a mergulhar com botos cor-de-rosa e conviver com araras, jacarés e macacos-de-cheiro.

Durante todo o tempo, ficamos sem contato com o mundo exterior. No meio da floresta, sem sinal de wi-fi, celulares e tablets eram badulaques inúteis. Daí meu profundo desencanto quando, após o desembarque, atualizei-me das últimas notícias. Soube que, enquanto aprendíamos a respeitar os índios e a floresta, sorvendo a profunda sabedoria de Irê-miri, o país entrara em uma espiral de violência contra os povos indígenas.

No Maranhão, fazendeiros haviam promovido uma barbárie contra os gamela, deixando feridos a bala e a golpes de facão. Em Brasília, o presidente da Funai, instituição que vive escandaloso processo de sucateamento, fora demitido após se negar a nomear pessoas ligadas ao agronegócio. No Congresso, uma CPI liderada por um representante da bancada ruralista conspirava para criminalizar antropólogos e, suprema audácia, transferir para deputados e senadores a competência pela demarcação de terras. Tudo isso, pasmem, exatamente quando a ONU tem recriminado o Brasil pelos sucessivos retrocessos nos direitos indígenas.

Mais do que nunca, parecem urgentes os termos expressos na canção composta, em parceria com Carlos Rennó, por Chico César -artista que, aliás, fez o belíssimo show de encerramento do nosso cruzeiro literário: "Pelo respeito e pelo direito/ à diferença e à diversidade/ de cada etnia, cada minoria/ de cada espécie da comunidade/ de seres vivos que na Terra ainda há,/ demarcação já!"

P.S.: Em seu idioma original, o poético nome de Irê-miri significa Rouxinol. Para facilitar a comunicação com os brancos, desde que passou a trabalhar como guia amazônico, sem nenhuma poesia, deram-lhe o codinome de Alex.


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