Folha de S. Paulo


Poetas são recebidos em Córdoba com a poesia derramada pelas ruas

A Espanha foi um dos lugares do mundo onde o pensamento anarquista deitou raízes mais fundas. Como é sabido, o anarquismo é um movimento social, político e filosófico que busca (ou será que já devemos dizer que buscava?) a criação de uma sociedade sem classes na qual não existam estruturas de controle como o Estado e o governo.

Durante quase todo este ano, que vai entrando em sua reta final, a Espanha vem sendo um país onde não existe governo, embora as estruturas do Estado tenham continuado a funcionar. E não exatamente devido a alguma revolução anarquista chegada ao presente desde os tempos passados da terrível Guerra Civil que dilacerou o país e o atirou nas mãos da ditadura franquista.

O maltratado sistema político espanhol e a situação interna da nação fizeram com que nenhum dos partidos que disputam o poder tenha podido formar um governo. Depois de irem às urnas duas vezes, os espanhóis vão ter que retornar em dezembro para checar se finalmente algum dos candidatos na disputa consegue alcançar os votos necessários para chefiar o governo.

Renata Borges/Renata Borges/Editoria de Arte/Folhapress

Essa situação poderia nos levar a imaginar uma conjuntura de caos no país. Entretanto, nos meses em que os espanhóis vêm vivendo sem governo, sua economia deprimida melhorou, o desemprego caiu vários pontos percentuais, o número de turistas que visitaram o país anda por volta de 70 milhões e as principais atividades sociais, culturais e civis vêm sendo realizadas com normalidade quase total –ou com normalidade absoluta, para um país que não tem governo!

A estranha conjuntura política espanhola é, em grande medida, a expressão de um contexto em que as forças políticas tradicionais entraram em crise de esgotamento, e o simples nascimento de novos partidos situados de um ou outro lado do diapasão ideológico alterou o equilíbrio que se tinha apoiado sobre o bipartidarismo.

Essa nova balança de possibilidades políticas, além de ser necessária, parecia imprescindível para uma sociedade maltratada pela crise econômica e pelas más gestões administrativas contaminadas pela corrupção e o compadrio.

No início do mês de outubro, esse panorama todo ficou ainda mais esdrúxulo, com a crise interna do partido de centro-esquerda, que durante anos liderou esse lado do arco político. Sem a capacidade de aliar-se a seus vizinhos da esquerda, o chamado Partido Socialista Operário Espanhol está dando seus gritos finais, pelo menos da forma em que existiu desde o retorno da democracia à Espanha.

O resultado mais lamentável dessa crise é que, diante das diferenças internas inconciliáveis com que a esquerda costuma se manifestar, abre-se o caminho para a vitória da direita, que pode ter pela frente muitos anos de governo na Espanha.

Ou seja, o país voltará a ter governo e será um governo de direita, com sua imprescindível corte neoliberal e sua tendência ao corte de benefícios e conquistas sociais e cidadãs, que já está sendo praticado.

Entretanto, enquanto tudo isso acontece na esfera da política, a vida continua, por sorte... E tive a ocasião de comprová-lo da melhor maneira que se poderia imaginar: constatando que a poesia, a velha e maltratada, vilipendiada e pouco mercantil poesia, pode continuar a ser uma manifestação que se introduza no cotidiano das pessoas e lhes leve um pouco da melhor beleza.

Há 13 anos, a cidade andaluza de Córdoba, uma das mais belas e emblemáticas do mundo por ter sido fruto do encontro e síntese de culturas muito diversas, organiza o Festival Cosmopoética, que, por duas semanas, toma conta das ruas da cidade e a converte em um verdadeiro poema vivo.

Sob um lema que expressa uma verdade profunda –"Ninguém pode escapar da poesia"–, poetas de todo o mundo vão a Córdoba, e a cidade os recebe com a poesia derramada pelas ruas: nas praças, nas feiras, nas escolas, nos bares. Até as badaladas dos relógios repetem versos ao tocar as horas. A silhueta do homem de chapéu do pintor Magritte convida as pessoas à poesia, e homenagens são feitas a Tzara, ao dadaísmo, ao surrealismo. Por alguns dias, ou pelo menos algumas horas, as pessoas se esquecem da política e se deixam envolver por versos e canções.

E, embora a triste realidade do mundo de hoje seja que nem na Espanha, nem no Brasil, nem em Cuba, nem nos Estados Unidos, ninguém pode escapar da política, alguns cordoveses obstinados abrem uma jaula muito mais amável para convidar a todos a conviver com uma das mais belas criações humanas por duas semanas e para nos recordar que, apesar do que procuram nos inculcar, podemos viver sem governo, mas não sem poesia.


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