Folha de S. Paulo


Pergunta ao povo colombiano: 'Vocês querem viver em paz ou não?"

Dentro de alguns dias o povo colombiano será consultado sobre a pergunta mais importante e, ao mesmo tempo, incrível: "Vocês querem viver em paz ou não?"

Formulada dessa maneira, a pergunta pode soar absurda, definitivamente ridícula. Por acaso alguém não quer viver em paz? Mas, se for vista no contexto daquela que há mais de meio século vem sendo a história desse país sul-americano, aparece algum sentido na pergunta, pois na realidade o que vai ser submetido a referendo nacional será em essência a mesma coisa (paz ou não?), mas com uma nuance importante: os colombianos querem viver em paz dentro das condições dos acordos firmados em Havana entre o governo e a guerrilha das Farc, ou consideram inaceitáveis os termos gerais ou particulares desse pacto que é simplesmente um marco histórico?

Um processo social, militar e político como o vivido na Colômbia evidentemente implica a existência de muitas feridas, demais. E algumas dessas questões são tão profundas que não podem ser esquecidas (as cicatrizes estão à vista), e é justo, imprescindível, que não o sejam. Nem de um lado nem de outro dos grupos em disputa. Dentro dessa trama, porém, também são infinitos os matizes que muitas vezes escapam das análises globais e que possuem seu peso específico nas perspectivas de muitos colombianos.

Renata Borges/Editoria de Arte/Folhapress
Ilustração Leonardo Padura de 24.set.2016

São incontáveis as histórias regionais, familiares e pessoais dos efeitos deixados pela guerra e a violência sobre um número enorme de cidadãos desse país. Crimes de toda espécie cometidos de um e outro lado do campo de batalha, matanças de civis, sequestros, deslocamentos humanos de povoados inteiros, famílias dilaceradas, além da criação do espaço propício ao florescimento do negócio do narcotráfico com todas suas sequelas, também violentas e deformantes –essas são algumas das consequências sofridas e das realidades vividas nestas últimas décadas pelos nascidos nesse país.

A Colômbia de hoje é um país traumatizado, e isso é resultado da guerra. Mas, pode haver uma Colômbia futura, diferente, capaz de lamber suas feridas e erguer os olhos como resultado do retorno da paz? Creio que é justamente isso o que está em jogo agora: o futuro, não o passado. E todos os colombianos sabem disso, inclusive os que, pelos motivos que forem, pensam que uma paz como a que se pretende referendar seria inaceitável e que vão votar contra sua instrumentalização.

Entretanto, mais que razões de princípio (ou de final), penso que, como costuma ocorrer em processos dessa dimensão, em torno dos acordos de paz firmados em Havana se fez presente um jogo político que pode parecer simplificado ou mascarado por posições tradicionais de esquerda e direita, mas que, na realidade, é fundamentado por dois modelos possíveis de paz, modelos que erguem a paz como foi concebida como escudo ou a negação dela como espada para conservar o mesmo estado de coisas –até que ocorra um milagre.

O caminho percorrido nos anos de negociações realizadas em Havana entre os representantes do governo e da guerrilha tem sido tão difícil como o é qualquer reconstrução social quase perpetuada pela história. Os dois lados tiveram que ceder, aceitar, propor para passar por cima de meio século de ofensas e dor e chegar a um ponto essencial de coincidência: o melhor futuro para o país.

Tive recentemente a sorte de estar em Colômbia em duas ocasiões e, em cada uma dessas estadias, realizei minha pesquisa particular. Ouvi respostas e escutei argumentos diversos de pessoas das mais diferentes classes sociais e militâncias políticas. Mas, por sorte, a opção que os colombianos vão escolher, ao que tudo indica, é viver em paz.

Essa opção pela conciliação em um mundo onde primam a agressão e a vingança, onde os partidos políticos das mais diversas tendências perdem credibilidade, onde o terrorismo e a violência se disseminam como uma praga maligna –nesse mundo a aceitação da paz pode ser a resposta mais exemplar de um país e de cidadãos que decidem deixar o passado de lado, revisar e analisá-lo, mas, sobretudo, superá-lo, para projetar um futuro melhor com a maioria dos colombianos. Creio que essa maioria o merece.

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página: