Folha de S. Paulo


Passear por Weimar nos faz sentir dentro da história

Um congresso de hispanistas alemães e latino-americanos me permitiu visitar pela primeira vez a cidade de Weimar, e as horas que passei caminhando por suas ruas hoje tranquilas deixaram-me na retina e na mente, como poucas vezes já aconteceu em minhas andanças, o forte sabor residual de ter estado dentro da história.

Isso porque, ao longo dos mil anos de existência dessa cidade ainda pequena da Turíngia, a história alemã e, de certa forma, a europeia e universal passaram por esse lugar, deixando rastros indeléveis da grandeza do homem, e também de algumas de suas maiores tragédias e misérias.

Renata Borges/Editoria de Arte/Folhapress
Ilustração Leonardo Padura de 30.jul.2016

Um pequeno hotel de Weimar com uma discreta sacada dando para a praça do Mercado, eterno centro de confluência da cidade, me surpreendeu com a presença de uma escultura em tamanho natural de Martinho Lutero, gerador de uma das grandes reformas religiosas do mundo ocidental, tão importante que moldou o caráter alemão e de vários países do centro da Europa.

Essa sacada do Hotel do Elefante resume um conceito importante dessa evolução que chamamos a história. Há alguns anos vem sendo colocada nesse espaço uma imagem de um grande homem da cultura alemã, especialmente de algumas das personalidades ligadas à grande crônica cultural e política dessa cidade tão pequena, mas onde aconteceram tantos fatos memoráveis.

Ali esteve de corpo presente o grande escritor Thomas Mann, mas por ali também passaram as imagens de Goethe e Schiller, ambos poetas vistos como os pais da pátria alemã e ambos moradores de Weimar em certa época. Estadistas, filósofos, cientistas e músicos ocuparam esse lugar privilegiado para nos recordar o melhor da história, porque ali esteve em certa época a encarnação do pior que o ser humano pode gerar. E os cidadãos de Weimar decidiram conviver com a história, antes de esquecê-la ou maquiá-la.

Porque foi em Weimar, a culta Weimar, que Adolf Hitler conquistou a primeira vitória eleitoral em seu caminho para o Reich e o horror, e foi nessa sacada discreta que o grande ideólogo do nazismo pronunciou, com o braço erguida, alguns de seus discursos para uma multidão inflamada com suas palavras, convencida de que aquele pequeno austríaco devolveria a grandeza da Alemanha e a reergueria da humilhação de uma guerra perdida. Ali está uma das fontes que nutririam o rio do terror e o Holocausto, que também teve um de seus cenários em Buchenwald, campo de concentração nas imediações de Weimar.

Exatamente em Weimar. A cidade de bosques públicos e tranquilos onde o poeta Goethe e seu amigo Schiller escreveram algumas das páginas mais importantes da história da literatura universal e fortaleceram o melhor do espírito romântico.

A Weimar do pintor Cranach, o Velho, e que acolheu Liszt, Bach e Wagner. A Weimar onde Nietzsche se radicou e onde ainda hoje está a maior parte dos papéis de um dos filósofos mais influentes da modernidade. A Weimar onde nasceu e foi fundado o movimento da Bauhaus, que transformou os conceitos do design e da arquitetura universais –a Bauhaus que, por ser revolucionária, irreverente e criativa, foi expulsa da cidade quando o espírito nazista começou a se manifestar, disseminando seus protagonistas por meio mundo.

A cidade de Weimar é, além disso, um dos lugares por onde Napoleão Bonaparte andou, tanto que seu Exército imperial travou várias batalhas em suas imediações. E, como se não bastasse, foi em Weimar que foi fundada em 1923 aquela que ficou conhecida a República de Weimar e, três anos mais tarde, onde surgiram as Juventudes Hitleristas.

Visitar Weimar tem o poder de nos fazer sentir como todos somos parte da história e como a história faz parte de nossas vidas. E também de nos recordar que a história pode ser passado, tema de museus, mas ao mesmo tempo presente.

Pois é por meio de suas aulas de grandeza e dor que deveríamos aprender. E saber que a grandeza das ideias e a miséria do pensamento, a bondade e a maldade podem influir em nossas existências pessoais e coletivas e então recuperar a certeza, tantas vezes esquecida, de que nunca estamos a salvo do pior que a espécie humana pode engendrar: o ódio, a xenofobia, a manipulação da massa ferida e empobrecida, manejada por líderes manipuladores e pelo diabo que atentou Lutero.

Embora a história também possa nos devolver a convicção de que somos capazes de criar tanta beleza como a que nos presenteou essa bela e hoje pacífica cidade de Weimar, onde, por sorte, hoje impera no Hotel do Elefante uma imagem de Lutero e, há duas décadas, estátuas de bronze de Goethe e Schiller presidem sobre a maior praça da cidade.


Endereço da página: