Folha de S. Paulo


Memória partida, memórias perdidas

Cuba é uma nação obcecada por sua memória. É uma reação normal para um país com sua memória alterada. Por isso, tampouco é por acaso que, até onde se consegue avançar mais ao abordar esse conflito espinhoso, há a convicção de que o esquecimento não é admissível, embora talvez (sem apagar o rol das queixas) seja possível alcançar o perdão. Porém, lamentavelmente, às vezes nem sequer isso.

As décadas transcorridas desde o triunfo revolucionário de 1959 provocaram uma fratura da memória, como costuma acontecer em todos os processos político-sociais dessa natureza. Do passado assimilaram-se de preferência os marcos que conduziam ao presente e o validavam, enquanto se enterraram fatos e nomes prescindíveis ou incômodos para esse fim. De maneira semelhante, a comunidade cubana que foi crescendo na diáspora usava o passado para fundamentar suas atitudes e desconhecia o presente, o negava, considerando-o uma aberração histórica, algo que também constituía uma mutilação da memória coletiva.

Se nos últimos anos a diminuição das tensões políticas, somada a certas transformações econômicas e à passagem desgastante e inadiável do tempo, permitiu alguma recuperação da memória passada e presente da nação, ainda hoje o processo é irrealizável em sua totalidade complexa, devido à sobrevivência de velhos condicionamentos políticos ainda atuantes que, por necessidade ou conveniência, se negam a desaparecer.

Algumas semanas atrás, quando o presidente Barack Obama visitou Cuba, o tema da memória e do esquecimento voltou a esquentar, sem que muitos cubanos sentissem alguns de seus efeitos –devido à desmemória. É que justamente nesses dias aconteceu no país algo que revela como está quebrada a memória dos cubanos de hoje. Esse fato paradigmático aconteceu durante a abertura de uma partida de beisebol entre um time do Norte e outro da ilha, um desafio cuja simbólica primeira bola foi lançada por um dos maiores jogadores de beisebol cubanos de todos os tempos –que 90% de seus compatriotas que vivem na ilha nunca tinham visto jogar e de quem nem sequer tinham ouvido falar, porque ele desenvolveu quase toda sua carreira em circuitos profissionais estrangeiros. Como Messi, como Neymar, como Cristiano Ronaldo, ídolos nacionais da Argentina, do Brasil e de Portugal.

Parece absurdo, mas é dolorosamente real. Figuras como esse atleta não existiram nos meios de comunicação oficiais cubanos e, por isso, tampouco existiram na memória coletiva do país. Esse caso se repetiu à saciedade com outros atletas, com músicos, escritores, pintores, cientistas que, com ou sem posições políticas adversas ao sistema cubano, pelo fato de realizarem seu trabalho fora da ilha foram ignorados pela história escrita dentro do âmbito geográfico da nação e, desse modo, despojados de sua capacidade de engrossar a memória coletiva do país. Como se a geografia ou as opções pessoais determinassem o pertencimento.

Fora do país, os ideólogos e porta-vozes da comunidade cubana praticaram uma política bastante semelhante, mas de signo oposto: para eles apenas é válido e louvável o que se faz fora das costas insulares, enquanto a obra realizada na ilha só alcança seu verdadeiro valor quando seu protagonista abandona a nação e engrossa as fileiras dessa diáspora, passando então a ser um deles.

Tão lamentáveis quanto ou ainda mais, por acumularem a desmemória, são as estratégias de invisibilização que se praticam sobre indivíduos isolados ou contra movimentos vistos como reais, potenciais ou supostos oponentes. O manto de silêncio estendido contra os heterodoxos tem sido historicamente uma atitude praticada pelos ortodoxos –sempre se poderia rever o anátema lançado contra Baruch Spinoza pelos líderes religiosos de sua comunidade– que, em nome do bem comum, se outorgam o direito de decretar o que é salvável, conhecível, memorável.

Uma das grandes tarefas da sociedade cubana consiste precisamente, a meu ver, na recuperação, unificação e conservação de uma memória nacional abalada por decisões políticas que decretaram esquecimentos, negaram presenças e inclusive existências e que, a partir de seu poder quase onímodo, taparam e tapam, ainda hoje, vozes, gestos, fatos e atos que por seu valor e pertencimento deveriam entrar no território superior, permanente e necessário da memória nacional.


Endereço da página: