Folha de S. Paulo


Primavera em Paris

Cheguei a Paris no momento em que a primavera explodiu, como dizem. A também chamada Cidade Luz nos recebeu como costuma fazer, inclusive na primavera: com um céu encoberto que parece pairar sobre nossas cabeças e uma chuva intermitente que quase impossibilita um dos exercícios mais agradáveis que a cidade nos oferece: caminhar por ela, sobretudo à noite.

Nestes tempos em que as flores brotam no inverno e os lagos gelam no verão, a anormalidade normal do clima vem somar-se ao ritmo de uma vida citadina que também parece normal.

Os cafés e brasseries parisienses, sobretudo os do Quartier Latin, estão lotados –cada vez mais, com turistas chineses–, as lojas do centro procuram vender seus produtos em valores que superam minha capacidade de espanto (€ 700 por uma jaqueta muito simples que um chinês só compraria para mostrar mais tarde que esteve em Paris), as pessoas andam como se estivessem com pressa (mesmo que não estejam), e as mulheres são capazes de usar esses chapéus muitas vezes ridículos que só são elegantes quando usados em Paris.

Uma fila interminável se estende diante do Museu do Louvre (mais chineses), o Sena corre escuro e silencioso como eterna testemunha de tanta história, e o espírito de cultura da cidade está em toda parte, se bem que, para mim, seu refúgio favorito sempre tenham sido os cafés de Saint-Germain-des-Prés, onde pessoas como Jean-Paul Sartre e sua mulher, Simone de Beauvoir, em cuja honra nos demos de presente um jantar no Les Deux Magots, costumavam ir tomar alguns tragos, filosofar e tentar arrumar o mundo.

Enfim, Paris continua sendo Paris.

Mas, por baixo dessa imagem sempre bela e exultante, mesmo com chuva e céu fechado, Paris é uma cidade ferida. As cicatrizes dos atentados de novembro passado, que espalharam o terror e o desespero na capital francesa, ainda acompanham seus habitantes, que falam do que viveram naqueles dias infernais para tentar exorcizar a lembrança. E não será fácil, nem sequer para Paris, recuperar-se da visão de tanta violência e de seu resultado pretendido: o medo.

O pior do drama criado pelos ataques terroristas vem sendo conviver com a certeza corrosiva de que o horror pode retornar a qualquer momento e que, como a famosa roleta russa, pode atingir qualquer pessoa, em qualquer lugar. Porque não se trata de uma disputa frontal com um inimigo visível. Não é uma dessas guerras em que se ganha, se perde ou se assina um armistício e se levanta uma bandeira, inclusive a da paz –uma guerra em que é possível até o diálogo, o entendimento "in extremis" alcançado como resultado da violência.

A guerra do fundamentalismo é escura, sórdida e não tem rosto, ou, nesse caso, tem muitos rostos. Em um país onde vivem milhões de pessoas originárias dos países do norte da África, islâmicas ou não, mas cultural e etnicamente ligadas a seus locais de origem, identificar o inimigo potencial é impossível –ou possível demais. E assim se geram os mais lamentáveis efeitos colaterais, como a xenofobia e o boom das teorias de extrema direita sobre a emigração e a convivência cultural.

É precisamente esse um dos objetivos dos ataques terroristas, que se alimentam da criação e exploração do ódio, um caldo de cultivo de mais terrorismo e horror.

Contudo, a despeito do medo e das cicatrizes, inclusive as visíveis, os parisienses fazem o possível para salvar seu espírito e sua alegria de viver, mesmo sob esse céu fechado.

Meu colega e amigo Philippe Laçon, um dos sobreviventes do ataque à revista "Charlie Hebdo", veio me ver e me entrevistar. Em seu rosto ainda deformado está a marca mais visível do que ele viveu naquela manhã. Em sua mente, a memória do apocalipse. Mas em sua força de vontade e sua ânsia de viver, ler, amar está a única resposta possível ao terrorismo.

O fato de Philippe Laçon continuar a fazer jornalismo é mais importante que sofrer o clima horroroso da cidade mais bela do mundo, inclusive na primavera.


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