Folha de S. Paulo


The Truth

Um ditado adverte que há verdades que tiram sangue. Na realidade, uma verdade pode trazer para fora coisas piores, definitivamente fétidas, e por isso encontrar a verdade costuma ser tão difícil.

Uma conspiração, às vezes organizada, às vezes espontânea, praticada a partir do poder ou de uma relação pessoal, limita, oculta e em alguns casos até destrói a verdade.

Penso nas agruras da verdade porque tive ocasião recentemente de consumir três obras magníficas que tratam das suas vicissitudes.

Uma delas é um filme cujo título é exatamente este, "The Truth" (em português, "a verdade", mas lançado no Brasil como "Conspiração e Poder" e ainda em cartaz em São Paulo), que conta a história de uma jornalista americana, Mary Mapes, vilipendiada e excluída por ter feito o que se supõe que alguém de sua profissão deveria fazer.

Mas a verdade exposta por Mapes revela aspectos obscuros de um poder elevado demais, e, previsivelmente, a reação desse poder foi demolidora e esclarecedora.

Dirigido por James Vanderbilt a partir do livro de Mapes, o filme não recebeu nenhum Oscar, porque ainda hoje, talvez, a verdade que destaca seja dolorosa demais.

Uma biografia romanceada me revelou a história de Eduard Limonov, escritor, ativista e político russo assimétrico e inclassificável.

Escrito por Emmanuel Carrère, "Limonov" recebeu alguns grandes prêmios literários franceses.

Neste caso, o tema da verdade é mais complicado, pois abrange desde a possibilidade ou impossibilidade de lançar luz sobre uma personalidade tão complexa como a de Limonov até a imagem de dois países que, por esta e outras leituras, me parecem construídos sobre a mentira ou ausência da verdade: a URSS de ontem e a Rússia de hoje.

Quanto pode fazer o poder para estigmatizar a verdade? Até que limites criminais pode um governo ou um sistema chegar para criar uma imagem virtual de sua gestão?

O caso russo-soviético não é exemplar de outros países e governos? A história de Limonov, personagem entre o atraente e o repulsivo, capaz de fundar um partido nazista-bolchevique, percorre décadas de mentiras acumuladas e de verdades que fomos conhecer apenas com o tempo, e nem sempre completamente, para termos uma ideia aproximada do que aconteceu nesse país enorme, onde tudo é multiplicado por cifras exageradas.

Não menos dramática é a história narrada pelo filme "Trumbo "" Lista Negra", de John McNamara, sobre o caso de Donald Trumbo.

"Trumbo" soma-se a outras obras sobre a caça às bruxas desatada nos EUA nos dias cruciais da Guerra Fria. Com esse filme, que tampouco foi reconhecido no Oscar, entramos em outra história de marginalização, resistência e medo.

Porque, em seu empenho em ocultar ou tergiversar sobre a verdade, o poder lançou mão do mais devorador de seus mecanismos: o de fazer com que o homem se sinta desprotegido, vulnerável, assustado... porque não tem bases de apoio nem defesas possíveis em uma sociedade em que todos sentem medo.

O uso do medo e da fé das massas sempre foi mecanismo de poder.

Há muitos séculos, o medo era usado contra os cavaleiros templários para levá-los a confessar delitos que não tinham cometido.

O mesmo método, aperfeiçoado e generalizado, foi emprego por Stálin nos processos de Moscou para alcançar os mesmos fins: declarações autoincriminadoras com as quais os réus achavam que cumpriam com sua fé.

Os guardiões da pureza ideológica americana também usaram esse recurso contra Trumbo e milhões de cidadãos desse país, que confessaram culpas que não tinham.

O terror vem sendo instrumento recorrente da política e ofereceu a certos governantes os recursos para derrotar a resistência de outros, em nome da manutenção do poder.

Por isso, Hobbes definiu o medo como uma das causas da origem do Estado, e Maquiavel ensinou ao Príncipe como deveria utilizar o terror para governar, oferecendo a ele um manual de instruções para esse fim. Tudo com a finalidade de ocultar e perverter a verdade.

Assim, a perseguição à verdade faz parte integral da civilização humana e do exercício do poder. Mas a verdade, às vezes até assassinada, possui sua própria força: a de ser a verdade. E esse poder é o castigo daqueles que, em algum lugar do mundo e da história, querem e conseguem silenciá-la. Como Cristo, a verdade pode ressuscitar após três dias, subir ao céu e ali esperar a chegada do dia do Juízo Final.


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