Folha de S. Paulo


Cuba e Obama: fatos da nova era

Tive a oportunidade de vivenciar a visita do presidente Obama a Cuba a partir de um balcão muito especial: o da polêmica e intensa cidade de Miami, coração do exílio cubano. E pude comprovar que, se numa época ainda recente esse coração pareceu ser um músculo duro e homogêneo, hoje, mais do que nunca, ele mostrou ser composto de diversos ventrículos e aurículas que movimentam o sangue em ritmos diferentes e até em direções opostas.

A maioria dos que vivemos em Cuba (não me mudei para Miami, estou aqui de passagem) podemos considerar que a presença, as promessas e os estímulos de Barack Obama aos cubanos foram recebidos com o beneplácito do que já parece assinalar uma nova era: o tempo do diálogo, mais que o da hostilidade. Esta pode ser a aurora de um processo de mudanças em Cuba, já com mais distensão e, em breve, com maior intercâmbio comercial e cultural com o mundo. E, a partir desse instante, sem o fantasma sempre presente da potência inimiga, ansiosa por engolir o pequeno país do sul (pelo menos do modo em que tradicionalmente se concebeu essa digestão).

Entre os compatriotas de Miami as reações têm sido as mais diversas. Os comentários (que não são apenas os dos meios de comunicação) abrangem desde considerar Obama um traidor à "causa" cubana, com o argumento de que sua presença em Havana não fez mais que legitimar uma ditadura, até a maioria que aplaudiu a aproximação como o único caminho para se aproximar de seu país de origem e conseguir as melhorias que a Cuba necessita se quiser melhorar a vida de seus cidadãos, depois de longas crises e carestias. Para os emigrados mais pragmáticos, a convergência diplomática é o único caminho possível para alcançar os objetivos que o embargo e fundamentalismo não conseguiram por mais de cinco décadas.

Em todo caso, uns e outros, apesar da diferença geracional e de opinião, tiveram de concordar que o que se viveu em Havana nesses três dias intensos de março (nada menos que durante a Semana Santa) pode se converter, embora de formas ainda imprevisíveis, em uma nova etapa da vida dos cubanos que vivem em Cuba –e de muitos que vivem fora da ilha. Alguns já pensam em um possível retorno, segundo me admitiram.

Um presidente dos Estados Unidos reconhecer publicamente e diante de todos os cubanos que a política de embargo e hostilidade de seu país em relação a Cuba foi um fracasso e provocou sofrimento à população da ilha é um ato de realismo político e coragem histórica.

E o fato de esse presidente norte-americano falar com o cubano, Raúl Castro, de direitos humanos em seus países é um marco, há pouco impensável. O gesto de Obama, ao oferecer a Cuba a "rosa branca" da amizade do famoso poema de José Martí, pode ser visto como retórica, mas também expressa uma vontade política que encerra definitivamente a Guerra Fria nas Américas, justo no dia em que o fundamentalismo ceifava vidas inocentes em uma capital europeia.

Um acontecimento esportivo, porém profundamente político, pode mostrar ao leitor brasileiro as dimensões factuais e simbólicas do que aconteceu na ilha nestes dias.

Num amistoso de beisebol entre um time profissional norte-americano e a seleção cubana, a honra de lançar a primeira bola foi dada ao ex-jogador cubano Luis Tiant. Nesse instante, uma muralha dolorosa vinha abaixo. Para compreender o que um gesto tão simples significa, basta dizer que Tiant foi um dos maiores jogadores de beisebol (essa paixão cubana) no circuito profissional dos EUA. Mas, ao longo de toda essa magnífica carreira, nenhum cubano de Cuba jamais o viu jogar! Não era permitido transmitir na ilha as partidas das Grandes Ligas de Beisebol, vistas como a meca do mercantilismo capitalista nos esportes. Poderia um brasileiro conceber que, pelo fato de Pelé ter jogado na Espanha ou Itália, seus compatriotas nunca (sim, escrevi nunca) o tivessem visto jogar –quase não soubessem que ele existia?

Depois de Obama, chegaram a Cuba os Rolling Stones, representantes da música que, em certa época, era vista como penetração ideológica capitalista. Na fila de chegadas já aponta um grande desfile da Chanel. E depois disso... Depois será aberto o 7º Congresso do Partido Comunista de Cuba, regente do país –talvez a menos divulgada das cúpulas dos anos revolucionários e na qual, espera-se, todo o acúmulo de mudanças tomem algum rumo político definitivo. Mas, para saber sobre esse rumo –apesar dos sinais que atravessam o céu cubano– precisamos esperar pelas altas decisões do partido e por sua vontade, várias vezes expressada, de mudar o que precisa ser mudado, com realismo e otimismo.


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