Folha de S. Paulo


Rolling Stones: de olho em Havana

Mal foi recebida pelos meios de comunicação oficiais e a notícia já correu pela ilha como um furacão: Mick Jagger, o mais "rolling" de todos os Rolling Stones, o mais irreverente e provocador, havia chegado a Cuba em uma viagem de prospecção, porque os Rolling Stones querem se apresentar em Cuba! E Havana concordou!

Há algumas semanas, neste mesmo espaço, eu já tinha avisado: Cuba está na moda, definitivamente, e quase todo o mundo quer passar pelo país: alguns para cantar, outros para dançar, outros para fazer negócios, outros para pregar e muitos para ver e, se possível, tentar entender, como declarou a secretária do Comércio dos EUA, Penny Pritzker, depois de sua estadia em Havana.

Mas a presença de Mick Jagger por estas bandas tem muitos outros significados, ou, pelo menos, significados muito específicos, pois estamos falando mais ou menos do mesmo país em que ele e sua música, assim como a dos Beatles e de tantos outros grupos de rock dos anos 1960, foram considerados uma influência nociva para a juventude.

Por isso, sua presença era limitada nos canais de difusão; às vezes era até proibido tocá-la, e revelar um gosto pessoal por esses grupos e sua música podia ser visto como uma fraqueza ideológica muito grave.

Isso dava impunidade à polícia para exercer sua autoridade, com a possibilidade de confiscar ou simplesmente quebrar os discos dessa música "estrangeirizante" se os surpreendesse nas mãos de um jovem cubano da época –como em certa ocasião ocorreu diante de meus olhos.

Por sorte, alguns critérios ideológicos e artísticos de Cuba mudaram muito ao longo das décadas seguintes –e não apenas no que diz respeito ao rock. Primeiro lentamente, e depois de modo total, foram abertas as portas à difusão da música pop e rock na ilha, e foi revalorizada a personalidade de seus artistas e a importância de suas obras.

Assim, faz mais de dez anos que John Lennon tem uma estátua de bronze em um parque do centro de Havana, convertido em local de romaria de admiradores e turistas.

Mas Mick Jagger chega agora a Cuba de corpo completo e já se fala da possibilidade de um grande concerto no maior estádio de beisebol do país, no coração de Havana.

E o simples fato de imaginá-lo cantando em um cenário cubano me faz voltar no tempo outra vez, para mergulhar naqueles tempos de minha adolescência e juventude, quando teríamos dado a vida para assistir a um evento assim e nem sequer tínhamos o paliativo de poder ver nossos ídolos musicais na tela de alguma televisão.

Mesmo assim, nossa educação sentimental se fez na contracorrente daquelas políticas culturais, e, de uma maneira ou de outra (numa época em que nem sequer existiam toca-fitas), ouvíamos aqueles grupos e até conseguíamos cantar suas músicas.

Para muitos dos que hoje temos por volta de 60 anos, a trilha sonora da nossa juventude está gravada em nossas memórias com canções de Beatles, Rolling Stones, Chicago, Blood, Sweat and Tears, The Mamas and the Papas e as músicas do Creedence Clearwater Revival que meu personagem Mario Conde e seus velhos amigos ouvem em cada romance.

Talvez o próprio fato de eles serem uma fruta proibida, ou no mínimo vista como suspeita, tenha ajudado a fazer essa preferência deitar raízes, em vez de contribuir para dissolvê-la. É o que a censura costuma provocar. E, no final, foi um benefício espiritual que ganhamos, com gratidão apenas por esses músicos que, ainda que numa língua incompreensível, também cantavam para nós, que vivíamos na ilha.

Porque, à diferença de muitos dos jovens de hoje, fãs desse filho bastardo do hip-hop conhecido como reggaeton, pobre de ritmo e quase sempre grosseiro de letras, nós temos em nossa memória mais afetiva frases como "We all live in a yellow submarine" ou "I can't get no... satisfaction",

Talvez, penso, os Rolling Stones estejam chegando a Cuba tarde demais. Seus fãs mais fiéis, estamos entre os 60 e os 70 anos, enquanto sua música hoje já não significa o que significou ontem.

Mas, de qualquer maneira, é melhor tarde que nunca, penso também. E acredito que a presença deles em Havana vai sacudir o país do melhor dos modos possíveis: sacudir a memória, exorcizar os esquecimentos, e os membros de minha geração que já têm netos talvez possam ir ver Mick Jagger em companhia de seus descendentes.

E o neto poderá guardar a lembrança e algum dia, dentro de 50 anos, poderá contar a seu próprio neto que um dia assistiu à primeira apresentação dos Rolling Stones em Cuba, junto com o tataravô dele, e o viu chorar de emoção, de frustração e, por que não, também de "Satisfaction"!


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