Folha de S. Paulo


Cuba e EUA: 54 anos, 28 semanas e dois dias depois

Alguém fez o cálculo, e confio em sua habilidade aritmética: 54 anos, 28 semanas e dois dias.

Foi exatamente esse o tempo que transcorreu entre esta segunda e o dia 3 de janeiro de 1961, aquela data remota em que surgiu o anúncio, feito pelo então presidente Dwight D. Eisenhower, da quebra das relações diplomáticas entre seu governo e a vizinha ilha de Cuba.

Então foram arriadas as bandeiras que tremulavam sobre os prédios das embaixadas de Washington e Havana, e os dois países passaram não apenas a considerar, mas a tratar um ao outro como inimigos políticos –e não apenas políticos– declarados e irreconciliáveis.

O passar dos meses e dos anos só contribuiu para aprofundar a distância, a hostilidade, a inimizade.

Várias gerações de cubanos vivemos todos estes anos sob esse signo de rivalidade, que permeou quase todas as manifestações sociais.

Eu, por exemplo, passei assim toda minha vida consciente, desde os 5 anos que tinha naquele dia 3 de janeiro até os quase 60 que arrasto hoje.

Mas nesta segunda, 20 de julho de 2015, à 0h01, Cuba e Estados Unidos reabriram suas embaixadas em Washington e Havana nos mesmos prédios onde durante mais de 54 anos se ergueram os mastros de bandeira nus, como prova cabal da distância aberta entre os dois países.

Enquanto se aguardava a anunciada chegada do secretário de Estado John Kerry a Havana, na capital americana a bandeira cubana foi hasteada pela manhã, com a presença do chanceler cubano, Bruno Rodríguez, o protocolo necessário e a expectativa mundial gerada.

Foi um ato oficial e ao mesmo tempo cheio de simbolismo, fruto de uma distensão e capacidade de diálogo reiniciadas, reflexo de novos tempos –um gesto que marca um feito histórico a partir do qual os cidadãos dos dois países, mas sobretudo cubanos, começaremos a viver, de muitas formas, um tempo diferente, uma cambalhota histórica que, para a ilha, se enseja no mínimo interessante.

Os otimistas e os céticos em relação ao que pode acontecer admitem igualmente que muitas coisas vão mudar ou poderão mudar.

A profundidade dessas mudanças, o ritmo em que podem se dar, a vontade política para aceitá-las, retardá-las ou rechaçá-las em dado momento são as considerações que separaram uma e outra atitude.

O que é certo é que já há relações, mas não com normalidade. Para que isso aconteça, serão necessárias muitas cirurgias e será preciso aguardar para que as feridas sarem.

Com um embargo comercial e financeiro de um dos países (o mais poderoso) pesando sobre a vida do outro (o menor e economicamente instável), é impossível que o nexo seja normal. Mas alguma coisa será conquistada. E, em todo caso, é melhor a distensão iniciada que a hostilidade vivida.

O presidente Barack Obama, principal artífice da recuperação das relações entre seu país e Cuba, reconheceu que a política norte-americana anterior de assédio e bloqueio não funcionou nestes 54 anos, 28 semanas e dois dias e que a lógica e os tempos impunham uma retificação estratégica para conseguir o mesmo resultado: uma mudança de regime na ilha.

Editoria Arte/Folhapress

O presidente Raúl Castro, por sua vez, insistiu sobre o direito à independência e soberania cubanas e pediu também a devolução do território ocupado pela base militar de Guantánamo.

Enquanto isso, ouvem-se na ilha as vozes que advertem dos perigos que a nova proximidade pode ter para o status econômico, social e eventualmente político do país.

Fala-se em evitar o consumismo próprio do modelo americano, da defesa das raízes diante de uma "guerra cultural" aparentemente em curso, das influências nocivas da internet aberta...

Mas nesta segunda, apesar dos ressentimentos ainda ardentes e dos temores ou esperanças em relação ao que pode acontecer, fez-se história. Assistir a um instante de clímax na evolução dos dois países foi emocionante e reconfortante.

Perguntei à minha mãe, que com seus 87 anos já assistiu a tanto em sua vida longa, o que pensa do que aconteceu nesta segunda.

Ela me respondeu com as mesmas palavras que me disse quando caiu o Muro de Berlim, em 1989: "Nunca pensei que viveria tempo suficiente para ver isto". Mas o vimos. E outras coisas ainda veremos.

Tradução de CLARA ALLAIN


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