Folha de S. Paulo


Em nome de Deus

Acordei na quarta (7) com a notícia do massacre na redação do jornal humorístico "Charlie Hebdo", em Paris. Com horror, enquanto lia as primeiras versões do que aconteceu, senti que o eixo da terra tinha sido abalado: como se o mundo criado por Deus a partir do nada, apenas com seu poder divino e em apenas sete dias, estivesse a ponto de sair de órbita.

Alguns meses atrás, foi o assassinato de 43 estudantes no México; algumas semanas atrás, o massacre de 148 crianças em uma escola do Paquistão; agora a matança de pelo menos 12 pessoas na redação do "Charlie Hebdo". Em que mundo estamos vivendo? Até onde sei, os dois últimos desses atentados ocorreram em nome de Deus. Da ira de Deus.

Não é a primeira vez que acontece algo assim. Nem será a última, para a infelicidade de todos. Há séculos demais os homens matam uns aos outros em nome de um deus que às vezes até é o mesmo, mas que se aborrece com alguns e os faz matar por outros. Um prêmio divino aguarda os executores por tal ação.

O terrível deste último fato sangrento e de inspiração sagrada é que foi cometido contra homens que exerciam um dos ofícios mais necessários que pode existir neste mundo desequilibrado: o de nos fazer rir ao mesmo tempo em que nos faz pensar. Mataram homens cuja arma maldita era a sátira.

Não é, tampouco, a primeira vez que a censura se tinge de vermelho. Vivemos em um mundo onde a censura é a política de muitos Estados, líderes, burocratas, profetas iluminados defensores das mais diversas purezas. E, de uma forma ou de outra, querem silenciar os outros. Às vezes de modos mais sutis, mas por vezes de maneiras tão brutais quanto a que acaba de acontecer em Paris.

Muitas, muitas pessoas no mundo sentiram a comoção provocada por este crime e estão chorando. Mas muitas, muitas pessoas no mundo também vão reagir da pior maneira possível: alimentando seu ódio, vivificando a xenofobia, armando seu medo.

Essa é a pior consequência do que aconteceu, e o mais terrível é que aqueles que o incentivaram sabem disso... e querem que seja assim. Porém, como tantas vezes aconteceu, muitas das vítimas que esta barbárie deixará como sequela serão pessoas inocentes, inclusive crentes em Deus, mas incapazes de matar em seu nome.

Conheci pessoalmente Georges Wolinski, um dos cartunistas assassinados na redação do "Charlie Hebdo", dois anos atrás. Ele me visitou em minha casa em Havana, porque queria conhecer pessoalmente o autor de "O homem que amava os cachorros" e os romances do detetive Mario Conde.

Enquanto conversávamos sobre nossos trabalhos respectivos, ele fez uma caricatura de mim, que a partir de agora guardarei com deferência mais especial. E, se eu soubesse rezar, hoje rezaria pela paz de sua alma e pela de seus companheiros mortos.

Mas será que Deus ouviria minhas orações, ou terá escutado as súplicas dos assassinos?

Tradução de CLARA ALLAIN


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