Folha de S. Paulo


A realidade e a literatura

Escrever ficção é (ou deve ser) um ato de suprema liberdade. A relação entre o escrito e a realidade histórica ou cotidiana passa pelo crivo seletivo da imaginação do romancista, e a verdade narrativa que chega ao leitor acaba sendo uma revisão ou recriação dos acontecimentos aos quais a perspectiva do escritor e a cumplicidade do leitor conferem sua condição de realidade literária.

Nesse território artístico tudo é possível, porque a liberdade que define e acompanha a ficção torna os argumentos de uma realidade criada independentes dos fatos de uma realidade ocorrida.

As duas realidades são isso, realidades: só que, em uma, habitam pessoas e na outra, personagens. Em uma imperam as leis da vida e, na outra, as do drama.

Mas há ocasiões em que literatura e realidade se cruzam por caminhos que podem se mostrar surpreendentes. E ultimamente, como escritor, tenho sido testemunha de algumas dessas surpresas.

Desde que publiquei meu romance mais recente, "Hereges" (a sair em breve no Brasil), vem acontecendo de personagens tomados da vida real ou saídos da minha imaginação cruzarem comigo nos lugares mais inesperados -como se o fato de tê-los recriado (da realidade real) ou criado (para que vivam em minha realidade literária) os tivesse colocado no caminho de minha existência -real.

No romance, falo de um jogador de beisebol cubano que atingiu o auge de sua fama lá pela década de 1950, quando chegou a ser um ídolo dos fãs desse esporte em Cuba e nos Estados Unidos.

Eu nunca tinha visto essa pessoa (nem sequer das arquibancadas de um estádio), apenas a conhecia por referências jornalísticas; pouco sabia de seu caráter verdadeiro, mas, graças a meu romance, alguns amigos conseguiram organizar um encontro meu com a pessoa real que eu tinha convertido em personagem literário.

A realidade e a literatura tiveram nesse instante um desses cruzamentos inesperados -porque não é todo dia que um romancista fala, na realidade concreta, com um de seus personagens da realidade imaginada.

Mais recentemente, uma pessoa me abordou ao final de uma palestra que fiz em San Juan de Porto Rico. Era uma cubana de origem judaica que, em 1959, muito jovem, tinha saído de Cuba com sua família.

Essa mulher, que calculo que tivesse uns 70 anos, se aproximou de mim e, ao tentar falar, começou a chorar.

Entre alarmado e confuso, esperei que a senhora se acalmasse e então pude saber o motivo de seu pranto: tinha lido meu romance nos últimos dias e, enquanto o fazia, descobriu como sua vida na Cuba dos anos 1940 e 1950 tinha sido descrita, quase detalhe por detalhe, na existência criada e fictícia de um de meus personagens: um jovem judeu que vive em Cuba naqueles anos e abandona a ilha em 1958.

A mulher me perguntou: "Como você foi capaz de escrever minha vida e me fazer vivê-la outra vez?"

Eu só consegui lhe responder: "porque a vida e a literatura são um mistério no qual pode ocorrer que sua realidade seja também minha realidade".


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