Folha de S. Paulo


Os fundamentalistas

Eles têm algo em comum, quer sejam cristãos, muçulmanos ou católicos, de um ou outro extremo do diapasão político, do Norte ou do Sul, pré-modernos ou pós-modernos: estão convencidos de que apenas eles têm razão.

Uns com bombas e fogueiras, outros com palavras e repressões mais ou menos grosseiras, mais ou menos sutis, destroem ou oprimem quem não compartilha suas opiniões e modos de entender a vida, pois são os donos da verdade e, tragicamente, muitas vezes do poder.

Qualquer ocasião ou pretexto é válido para destilar sua ânsia de controle e colocar em prática seus castigos (ou, pelo menos, tentar fazê-lo). Não importa se exercem o poder ou não: seu verdadeiro poder emana de suas próprias convicções. Por isso vivem em guerra santa e fazem tudo que esteja ao seu alcance para cumprir sua missão superior.

Um exemplo tosco: há uma turba fundamentalista que me persegue. Sou fumante, e os defensores do antitabagismo me reprimem até o limite fundamentalista.

Muitos deles já foram fumantes no passado, e esses são os piores, pois é sabido que não existe fanático pior que um renegado. A fumaça do cigarro os incomoda a ponto de provocar asco, embora se desloquem em automóveis que consomem petróleo, utilizem detergentes e ácidos, se valham de embalagens metálicas ou plásticas que envenenam o mundo.

Mas consideram que o fumante deve arder na fogueira, melhor ainda se tiver sido ateada com as brasas do último cigarro que ele acendeu. Minha opção soberana de me arriscar a morrer de infarto ou câncer não interessa a eles. Sua função é me limitar, me tirar esse direito.

Em um mundo em que se fala cada vez mais da necessidade de praticar as liberdades democráticas, do direito à livre expressão, de emancipações sexuais, de gênero e credos, eles sentem que cumprem uma missão e o fazem confiantes em que Deus, ou algum poder próximo a ele, valida seus atos. E sua missão é reprimir, controlar e até matar o próximo que não milite em seu bando. Podem até apedrejar uma irmã de sangue porque pretende "manchar" a honra da família.

Parece que os homens não aprendemos nada com nossas andanças históricas. As inquisições, os pogroms, as limpezas étnicas, marginalizações políticas e descasos sociais que temos sofrido ao longo dos séculos murcham como coisas do passado, capítulos de livros que muitos nem sequer querem ler.

É terrível constatar como ainda hoje, em muitas sociedades, há diversas formas inquisitoriais empenhadas em garantir que exista uma só maneira de entender a Deus ou outro ser superior.

A grande utopia do homem, a sociedade dos iguais sonhada desde os tempos da Grécia clássica, só será alcançada quando se concretizarem princípios sagrados como a igualdade dos homens e o direito à liberdade de pensamento e ação – sempre e quando essas liberdades e ações não sejam o começo do fim das liberdades do próximo. Quando desaparecerem fundamentalismos e repressões entre os quais ainda respiramos, em pleno século 21.

Tradução de CLARA ALLAIN


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