Folha de S. Paulo


Os patos de Salinger

Há anos eu tinha vontade de viajar para Nova York no inverno. E sabendo, como todos sabemos, como podem ser os invernos nova-iorquinos, não pensem que sou masoquista: uma razão literária e zoológica me impelia a realizar esse desejo.

Mas, desde 1992, quando visitei a Grande Maçã pela primeira vez, minhas várias viagens a essa cidade aconteceram no outono e na primavera, e minha necessidade de pisar nela sob frio invernal continuou sem se concretizar.

A razão pela qual eu queria estar em Nova York no inverno é muito simples ou quase boba, conforme a visão que se tem, mas era uma exigência que tinha sido desencadeada nos já distantes anos 1970 e me perseguia desde então, intacta, talvez intensificada pela passagem do tempo.

Porque foi no final dessa década, enquanto fazia meus estudos universitários, que primeiro li "O Apanhador no Campo de Centeio", o romance de J.D. Salinger que décadas atrás comoveu o mundo e ainda o comove –pelo menos a mim o fez–, a obra que daria fama eterna àquele escritor enigmático e esquivo, um dos ícones artísticos do século 20.

No romance, como todos sabem –ou deveriam saber–, são contadas as aventuras de um adolescente desorientado e inconformado com tudo, chamado Holden Caulfield. No livro, o jovem protagonista é expulso do colégio onde estudava e perambula por Nova York durante vários dias. Em suas andanças, ao chegar ao Central Park nova-iorquino e ver os patos nadando no lago, Holden se pergunta para onde irão os patos quanto o inverno chegar e o laguinho ficar congelado.

Desde então, essa pergunta também me perseguia e, em cada ocasião em que fui a Nova York, fiz a peregrinação até o Central Park para ver o laguinho e seus patos, aparentemente felizes e despreocupados nas águas do lago mais urbano do mundo.

No final, quis a literatura que neste inverno eu pudesse chegar a Nova York. Eu faria ali uma das escalas na divulgação da edição norte-americana de meu livro "El Hombre que Amaba a los Perros" ("O Homem que Amava os Cachorros") e, na mesma tarde de nossa chegada, minha esposa Lucía e eu fomos como peregrinos até o Central Park e caminhamos em busca do lago.

O laguinho estava parcialmente gelado, mas... não completamente. E, apesar da temperatura que a água devia ter, vi que ali estavam muito tranquilos os benditos patos que tanto preocuparam o Holden Caulfield de "O Apanhador no Campo de Centeio", os patos que durante 35 anos também eu quis saber o que faziam durante o inverno –para descobrir que fazem o mesmo que no verão, só que em menos espaço e com a água mais fria.

E a única explicação que agora tenho para a atitude desses animais é que são nova-iorquinos demais para sequer pensar em ir a qualquer outro lugar: apesar do frio e até dos ataques terroristas, Nova York os cativou, como fez com o próprio Holden Caulfield e com muitos outros milhões de pessoas que têm prazer em viver em uma das cidades mais inóspitas do mundo. Questão de gosto, não?

Tradução de CLARA ALLAIN


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