Folha de S. Paulo


Cuba repara seu coração?

Uma vez eu disse que Cuba era um país com o coração partido. A existência de duas comunidades, uma na ilha e outra na diáspora, por vezes distanciadas e até antagônicas, dilacerou a alma de um país tão orgulhoso e nacionalista (no bom e no mau sentido do termo), enchendo-o de ressentimentos e ódios alimentados por décadas de um e de outro lado das costas cubanas, com razões de peso, mas também com manipulações políticas e sentimentais oportunistas.

Os dois polos mais dramáticos dessa separação têm estado em Cuba e nos Estados Unidos, onde por mais de meio século foram parar mais de 1 milhão de nativos da ilha, multiplicados por seus descendentes. Ao longo desses anos, impropérios de todos os tipos foram lançados desde cada lado do estreito da Flórida: os que partiram foram tachados de "vermes", acusados de ser "escórias" e, sobretudo, "apátridas", às vezes pelo simples fato de viverem fora do país.

Enquanto isso, aqueles que permanecemos em território cubano éramos "comunistas", "radicais de esquerda" ou simplesmente "cúmplices" pelo fato, também simples e pessoal em muitos casos, de não termos optado pela emigração.

Recentemente visitei Miami, "a capital do exílio (radical) cubano", e nessa cidade fiz apresentações públicas em universidades e livrarias, falando de literatura, da liberdade como forma de heresia, da nostalgia e da necessária fraternidade que deve reinar entre todos os cubanos, se quisermos algum dia ter um país normal e próspero.

Contrariamente ao que poderia ocorrer em outros tempos (não muito distantes), nem uma única de minhas palavras foi rebatida pelos cubanos radicados nesta cidade, que lotaram os locais de minhas palestras. Ninguém falou em vinganças, ódios, represálias nem revanches: a linguagem da literatura, o desejo de convergência e concórdias foi mais forte, e só encontrei manifestações de afeto e proximidade, enquanto em filas semelhantes às que se formam em Havana, os leitores de Miami esperavam (disciplinadamente, algo também notável, em se tratando de cubanos) para que eu autografasse meus livros, para fazer uma foto com o escritor vindo de Cuba, foto que guardariam em seus arquivos ou postariam em suas páginas no Facebook.

Houve também, pois não poderiam faltar, os que em blogs, ou muitas vezes escudados no anonimato, lançaram os ataques de sempre, pretendendo ferir, degradar, manter posições.
Essa estadia em Miami me ajudou a entender algo: grande parte dos cubanos –creio que a maioria– deseja recompor o seu coração nacional.

Evidentemente, há e haverá esses fundamentalistas que se comprazem na divisão e se fortalecem com ela. Mas creio que ninguém mais pode negar que, onde quer que estejamos, somos muitos os cubanos que, sem esquecer nem pretender apagar cicatrizes, optamos por recompor o orgulhoso e enorme coração de nossa pequena pátria, convencidos de que a fraternidade pode superar inclusive a política e, sobretudo, o ódio.

Tradução de CLARA ALLAIN


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