Folha de S. Paulo


Carro elétrico é cigarro com piteira

Os carros elétricos e híbridos foram estrelas do recente Salão do Automóvel de São Paulo. Todas as montadoras tinham algo para mostrar em propulsão alternativa, sugerindo a iminência de uma revolução tecnológica que permitiria a sobrevivência do automóvel sem os danos da poluição.

Poucos dias após o encerramento do evento, no entanto, a Folha noticiou que "Avanço no carro elétrico não anima motoristas americanos". Por diversas razões, os novos motores não atraem, apesar de começarem a chegar ao mercado opções com preços competitivos.

O carro elétrico é a principal tentativa de sobrevivência de um produto em fase terminal. É como o cigarro com piteira ou baixo teor de nicotina, com que a indústria do tabaco enganou a opinião pública no último quarto do século 20, um produto menos agressivo, mas que causava os mesmos cânceres.

A indústria automobilística já encara um futuro em que carros individuais serão produtos sem atração para os consumidores e sem lucratividade para os produtores. Os preços e as margens de lucro caem em todo o mundo, acompanhando a redução da demanda nos países mais desenvolvidos. As grandes montadoras querem associar sua imagem à mobilidade e não mais ao automóvel, oferecendo diferentes opções de novos produtos e serviços.

Esse movimento, porém, é feito de forma ambígua: ainda que vejam o futuro pós-carro, não querem perder a chance de aproveitar a demanda onde ela ainda existe nos países em desenvolvimento, como Brasil, China, Rússia e, em seguida, países da África.

É um marketing esquizofrênico que, mais uma vez, reproduz os movimentos da indústria do tabaco: depois que ficou clara a relação do cigarro com o câncer, as grandes multinacionais do setor criaram um produto de transição (com baixo teor de nicotina), para confundir a opinião pública informada dos países desenvolvidos, e apostaram suas fichas no terceiro mundo. Hoje o consumo de cigarros na China é um dos maiores problemas de saúde pública no planeta, um crime contra a humanidade.

Aparentemente, o mercado norte-americano não se deixou seduzir pelo carro com piteira, ops, elétrico. O consumidor preocupado com a sustentabilidade percebe que a poluição é apenas um dano do automóvel, enquanto os outros seguem intocados. Já o consumidor que não foi convencido dos problemas, não tem razão para trocar uma tecnologia centenária por outra ainda por se consolidar.

Todas as grandes metrópoles têm um número de carros maior do que cabe em suas ruas. São Paulo é um exemplo perfeito: tem mais de 7 milhões de automóveis emplacados, mas apenas cerca de 10% deles circulam diariamente; quando mais gente tira seu veículo da garagem na mesma hora, a cidade para. Por isso, a velocidade do deslocamento no trânsito das grandes cidades é pouco maior que o do pedestre, semelhante ao da charrete e menor do que o de bicicleta, todas tecnologias antigas.

E aí reside a mentira de quem tenta vender os novos padrões de propulsão como solução: mesmo que todos os veículos atualmente em circulação fossem trocados por automóveis elétricos e autônomos, o congestionamento seguiria igual. Simplesmente não há lugar para eles, mesmo quando não poluem. Esse dinossauro vai ser extinto por falta de espaço.


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