Folha de S. Paulo


Uma Madre Teresa de Calcutá esquecida

Para não serem pegos de surpresa, jornais costumam preparar biografias de pessoas famosas, que deixam arquivadas para o caso de uma morte súbita, em horário inconveniente para seu processo industrial. São casos mais frequentes com idosos, acidentados ou pessoas com saúde frágil. Atribuímos a esses textos uma condição sigilosa, para não parecer agourentos .

Em 1992, a Folha me pediu que escrevesse um obituário de Madre Teresa de Calcutá. Foi assim que conheci a freira católica. Entenda bem: não pessoalmente, mas a sua santidade, ou melhor dizendo, para os incrédulos, suas histórias.

Nascida em 1910, ela havia recebido o prêmio Nobel da Paz de 1979, logo depois da entronização do papa João Paulo 2º, que entendia que a vida dos santos potencializava a fé dos fiéis e por isso acelerou processos de canonização ao mesmo tempo em que divulgava a experiência das "vidas santas". Madre Teresa teve no papa polonês um grande divulgador.

Naquele início dos anos 1990, eu vinha de cobrir os ataques a Sarajevo, na Bósnia, e por isso me chamou atenção o fato de ela ser nascida naqueles mesmos Bálcãs, que era uma típica filha das confusões étnica, política e racial daquele pedaço do planeta, que a cada início de século renova sua condição de "barril de pólvora da Europa" (como agora mesmo quando é a principal porta de entrada de milhões de refugiados do Oriente Médio).

Muitas incongruências incidiram sobre ela e seu ambiente. Madre Teresa de Calcutá não era Teresa nem tampouco de Kolkata, como atualmente é chamada a grande cidade indiana que ela escolheu para criar raízes. Seu nome de batismo era Anjezë (ou Agnes), sua família era albanesa, mas na região onde nasceu, a cidade de Skopje, os albaneses são minoria. Os albaneses são tradicionalmente identificados como de maioria muçulmana, mas ela tinha uma família católica romana. Quando nasceu, a região pertencia ao Império Turco (Otomano) mas após a derrota do país na Primeira Guerra Mundial, passou a reivindicar o nome de Macedônia (referência à antiga nação helênica de Alexandre, o Grande), vivendo sob disputa, frequentemente violenta, de diferentes povos eslavos e islâmicos, com pouco ou nenhuma relação com os gregos.

A importância trágica da Macedônia reside exatamente no fato de que sua instabilidade beira a inviabilidade, como costumam concluir os analistas mais racionais. O escritor americano John Reed, depois de passar por lá a caminho da Rússia, onde escreveria "Os Dez Dias que Abalaram o Mundo" (sobre a revolução comunista de 1917), disse que o século 20 começara e iria acabar sob ameaça de guerras civis na Macedônia. Ele acertou na mosca.

Talvez por isso, Anjezë tomou a decisão de deixar Skopje para trás e aos 18 anos ingressou numa ordem religiosa na Irlanda e se tornou freira sob o nome de uma santa, Teresa, conforme a tradição. Foi morar na Índia, onde o cristianismo é imensamente minoritário, passando a se dedicar ao amparo dos pobres. Em 1965, fundou uma ordem chamada Irmãs Missionárias da Caridade, cujas freiras são conhecidas pelo hábito branco com bordas marcadas por listas azuis, que ela havia adotado anos antes. Sua organização logo se espalhou pela Ásia e por vários países com grande índice de pobreza e já no fim dos anos 1970 era reconhecida como uma "santa viva", como a descreveu a revista "Time".

Me impressionei também por essa onipresença que, no entanto, é marca na vida de muitos santos: São Paulo visitou todas as cidades para as quais posteriormente mandou as cartas que estão no Novo Testamento; Santiago andou meio mundo para chegar a Compostela, deixando sua marca em território basco, espanhol, francês, catalão; santo Antônio ficou conhecido como "de Pádua" mas nasceu em Lisboa, mudou-se para a Itália, onde foi companheiro de são Francisco de Assis, passou por Paris, pregou por vários países e deixou memórias associadas a vários cantos do mundo.

Os textos dos obituários escritos cautelarmente pelos jornais costumam ficar velhos e cair no esquecimento quando seus personagens se recuperam de doenças graves ou vivem mais que o esperado. Em 1997, quando Teresa de Calcutá morreu, os anos haviam passado e aquela biografia me ficou esquecida. Até agora, quando li que o Papa Francisco enviou para celebrar a missa de canonização na nova santa em Skopje, sua terra natal, domingo que vem (11), o arcebispo de Sarajevo, a maltratada capital da Bósnia. Dois velhos neurônios se juntaram em comunhão.


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