Folha de S. Paulo


O Carnaval e o transporte público

Deve ter sido por influência do espírito do Carnaval que umas dezenas de moradores da região da avenida Giovanni Gronchi foram à rua reclamar contra a implantação de uma faixa exclusiva de ônibus. A foto na imprensa mostra uns poucos protestantes com um cartaz que diz: "SIM ao transporte público de qualidade; NÃO à falta de segurança".

Está tudo invertido, como é próprio dos tempos de Rei Momo: os mais endinheirados que usam automóveis para se deslocar reivindicam o papel normalmente ocupado por trabalhadores organizados dizendo-se vítimas de uma arbitrariedade do Estado. Enquanto isso, os usuários de ônibus parecem ausentes, como se a maioria não fosse beneficiada pelo aumento da velocidade dos coletivos.

Também o slogan é uma fantasia: a primeira afirmação ("SIM ao transporte público") está ali carnavalescamente como uma concessão, limitada imediatamente por uma adversidade ("NÃO à falta de segurança"). Como uma coisa não tem relação com a outra, o entrechoque será resolvido em seguida por uma forma disfarçada da manifestação arraigada de hierarquia social no Brasil ("Você sabe com quem está falando?"), ali, na frase: "O Morumbi exige respeito".

O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) nunca viu um desfile de Carnaval na Sapucaí e nem consta que gostasse de samba. Mas em um estudo sobre a obra do também russo Dostoiévski criou o conceito de "carnavalização", referindo-se a manifestações culturais marcadas pelo riso e pelas máscaras, que invertem esteticamente os padrões sociais consolidados.

Donos de automóveis na rua protestando por transporte público de qualidade? Usuários de ônibus se movendo a velocidade maior do que os carros de luxo? "Será que eu serei o dono dessa festa?", pensa a gente tão modesta no buzão, enquanto o rei, paralisado na avenida, vê o ônibus de seus súditos passar como um rio em sua vida.

O crítico russo certamente se deleitaria ao analisar o protesto no Morumbi. Talvez começasse perguntando: por que os usuários de automóvel contrapõem bom transporte público a insegurança? O ônibus, que transporta 80 pessoas, andar mais rápido do que um veículo que transporta em média um solitário, deixa o dono do carro inseguro? E se tem medo, por que não passa para dentro do coletivo?

Uma quarta parte (25%) dos paulistanos se locomove todos os dias em carros individuais que ocupam 70% do espaço das ruas. Os outros 75% usam transportes coletivos que disputam 30% do espaço. Uma projeção rápida faz supor que as faixas exclusivas mantêm a desigualdade de tratamento: os 25% usuários de transporte individual ainda ficam com 50% do espaço de rolamento, enquanto os 75% nos ônibus se apertam na outra metade. Há uma perversidade nesses números que os motoristas do Morumbi procuram esconder sob o protesto contra um possível aumento da insegurança que viria a ser provocado pela faixa de ônibus.

Além disso, como os coletivos se espremem em pouco espaço, andam devagar e tendem a formar longas filas de ônibus vazios parados, um atrás dos outros. Ao contrário do estereótipo que os motoristas de carros individuais formam via imprensa, o problema endêmico no sistema de ônibus é o desperdício, não a superlotação.

A insegurança tem motivos, que não se relacionam com os ônibus: há muitos assaltos em ruas congestionadas do Morumbi. Cabe aos órgãos de segurança pública (Governo do Estado) coibir a violência. Cabe também à Prefeitura exigir medidas de prevenção à ação de criminosos, especialmente enquanto as mudanças ainda provocam engarrafamento.

Mas, como se costuma dizer: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Desde logo porque o risco de ser assaltado é maior no carro do que no ônibus. O bandido é um investidor, quer aplicar o mínimo esforço para alcançar rapidamente o máximo retorno. Assaltar um coletivo exige logística cara, é ação demorada que impõe riscos maiores e frequentemente sem bons resultados.

É por isso que tantas pessoas, de todas as classes, passam a usar transporte público e se sentem mais segura depois de experiências traumáticas de violência em carros particulares.

A boa notícia para todos os envolvidos na polêmica é que, em cerca de um mês, o trânsito na Giovanni Gronchi deve voltar a condições semelhantes ao período anterior às medidas. Possivelmente até melhore, como ocorreu em várias avenidas com faixas exclusivas. Nas próximas semanas, muitos motoristas vão buscar outros caminhos, outros vão experimentar os ônibus, agora mais rápidos que os carros.

Uma lei da engenharia de trânsito ensina que os motoristas procuram o ponto de maior economia. Se há uma rua mais vazia, que pode garantir o deslocamento no tempo que estava acostumado, ele vai para lá (menos carros na Giovanni); se os ônibus permanecerem mais velozes, muitos usuários de carro vão adotar os coletivos (também melhorando o trânsito). E assim, a acomodação racionaliza o fluxo de veículos. Além de criar a hierarquia correta: quem leva mais gente, tem mais espaço.

Sempre haverá quem não troca o carro por nada. As cidades com melhor transporte público no mundo têm grandes congestionamentos. Mas lá, dificilmente a minoria usuária de carro iria às ruas protestar contra uma medida que garante mais conforto para a maioria absoluta dos cidadãos, seja Carnaval, Páscoa ou Natal. Não tem jeito: para aqueles que não largam o automóvel, cada vez mais, "hoje é dia do riso chorar".


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