Folha de S. Paulo


E nós que amávamos tanto a revolução?

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Onde você estava ontem? A Paulista lotada e não te vi. Foram muitas manifestações contra o governo desde então e acho que te perdi de vista. A primeira passeata teve muita adrenalina. Ontem, nem tanto, havia até um clima de festa familiar.

Naquela primeira vez, estávamos juntos contra a ditadura, os estudantes faziam a jovem guarda do movimento. Quando os soldados da PM dispersaram a passeata com bombas de gás lacrimogêneo, sobre o viaduto do Chá, corremos para a Leiteria Americana, na Xavier de Toledo, tomamos chá fingindo de turistas. Uns dias depois, em Campinas, ocupávamos o Largo das Andorinhas, no centro da cidade, quando as tropas do Exército surgiram por todos os lados. Não pareciam querer prender ninguém. Em vez disso, gritavam irônicos: "Um, dois, três, quatro!", como se impusessem um ritmo à nossa marcha forçada.

Quando voltaram a estourar bombas de gás, você me deu a mão e corremos para a República, onde o odor ácido foi substituído pelo cheiro do amor. Era a ditadura e todos os movimentos de liberdade ajudavam a derrubar os generais.

Passaram alguns anos e fomos ao Largo 13 ver a fundação do PT. Estávamos todos juntos: ao lado de Lula, Suplicy, Plínio e Antonio Candido estava até o Júlio Mesquita, você e eu. Depois, saímos todos juntos, uns tomando pinga e outros uísque. Contra a ditadura. No dia seguinte, perdi a hora de tanta dor de cabeça. O mais legal de todos os nossos encontros rebeldes foi o primeiro comício das Diretas convocado para a praça Charles Miller. Foi uma ousadia. Ficamos escondidos na encosta gramada do Pacaembu, assistindo aqueles grupos de esquerda defenderem o que ainda era uma palavra de ordem considerada radical. Mas nós amávamos a revolução e queríamos revolucionar também o amor.

Acho que foi a última vez que nos vimos. Você sumiu ou eu sumi? Cada um acompanhou a Constituinte de um jeito.

Cada um acompanhou os protestos contra o Collor em um lugar diferente do país. Também, aquele foi um movimento realmente nacional! Como ontem. Achei que ia te ver na Paulista. Ou na orla do Rio ou na praça da Liberdade, em BH... Mas você preferiu ficar em casa? Ou foi ouvir a Clara pregar no evento governista? Confesso que só fui lá porque a Folha pediu. Do contrário teria assistido pela TV, no máximo bateria uma panela. Mas fui ver o que estava acontecendo. E tudo me pareceu igual àquelas manifestações em que estivemos juntos: a cada esquina uma palavra de ordem diferente. Mas todos estavam contra o governo, como naqueles tempos.

Tinha até gente pregando golpe militar, mas falavam sozinhos, a plateia seguia para a frente do Masp. Outros sugeriam impeachment e ali adiante alguém pedia a renúncia da presidente. Uma faixa era contra o ajuste fiscal e outra era contra a corrupção na Petrobras. Tinha de tudo ali, como nas nossas manifestações, quando você gritava "Abaixo a ditadura" e eu defendia "Abaixo a carestia", porque sua palavra de ordem era provocativa demais. É muito difícil sentir o vento da rebeldia contra. É mais fácil ser contra. Defender o governo, vestir a carapuça de chapa branca, é desconfortável. Ainda mais para nós que amávamos tanto a revolução. E agora ela pede que caia o governo que pediu a queda do governo anterior. Mas, afinal, você já devia ter aprendido, Gertrude: uma manifestação é uma manifestação é uma manifestação...


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