Folha de S. Paulo


Como se o câncer fosse necessário

Dez anos atrás eu "morri". Explico melhor: em 2004, tive câncer. Fui criado na época em que o diagnóstico dessa doença ainda correspondia a sentença de morte. Quando o médico disse o que eu tinha e acrescentou que a cirurgia tinha que ser feita imediatamente ("Seu câncer dobra de tamanho a cada semana"), eu "morri".

Hoje em dia muitos cânceres têm cura. Passados dez anos, a chance de minha doença voltar é estatisticamente zero. Estou livre, como inúmeros pacientes, diariamente, superam o que antes era insuperável.

Nos últimos meses, porém, me dei conta de que muitas pessoas próximas têm ou tiveram câncer. Cada vez mais gente recebe esse diagnóstico. Vivemos mais tempo, superamos a expectativa de vida de nossos pais e nesse novo patamar de idade, as neoplasias são mais comuns. Podemos dar de barato que em todo o país a medicina está mais acessível e eficiente: o pai de uma pessoa querida, no interior da Bahia, encontra bom tratamento no SUS; a mãe de uma amiga paulistana prefere o Instituto do Câncer (gratuito) a hospitais privados a que teria direito. Então, mesmo que as chances de cura sejam maiores e mais acessíveis: será que estamos preparados?

Acho que não: a sociedade contemporânea premia apenas aqueles que têm sucesso, voam a vida em céu de brigadeiro. Qualquer adversidade é tratada como fracasso. Assim é a notícia de uma doença que vai causar sofrimento, sempre, mesmo que seja curada.

Em meus anos sob o signo de câncer, procurei conversar com pessoas que tinham sofrido a doença. Uma delas foi o ex-ministro Luiz Gushiken. Ele espantava pela força com que enfrentava o mal, originalmente no estômago, que terminou por vencê-lo após vários anos. Em diversos encontros, durante sua agonia, conversamos sobre o caminho que trilhava. Ele enfrentava o mal com altivez, como se fosse um aprendizado diário.

Gushiken atribuía parte de sua força ao convívio com a médica oncologista, Nise Yamaguchi, indicada a ele por nosso amigo comum Eduardo Jorge, médico, candidato à presidência da República na última eleição.

Quis conhecê-la. No dia do encontro, a Dra. Nise saía da consulta com uma pessoa que acabara de receber um diagnóstico bem duro: seu câncer tinha voltado, com prognóstico sombrio.

"O que você fará de sua vida, quando se curar?", ela perguntou ao paciente depois de descrever o seu quadro. "Mas eu vou me curar?", ele questionou. Ao que ela respondeu: "Não dá para saber, mas se você souber o que quer fazer de sua vida vai viver bem, de qualquer forma, o tempo que lhe restar".

Saber onde quer chegar é pressuposto fundamental para encontrar um caminho, que pode ser mais curto ou mais longo. Quando ela me contou o diálogo com seu paciente, me lembrei do verso de Gilberto Gil que tratava o exílio em Londres, durante a ditadura, "como se ter ido fosse necessário para voltar, tanto mais vivo".

A via crucis de uma doença pode representar aprendizado importante, um "MBA em autoconhecimento", por assim dizer. A adversidade pode servir como rito de iniciação para uma vida mais bem acabada, ensinar as pessoas a melhorarem o mapa de seus caminhos, tirar da frente o acessório e encontrar o fundamental.

Em outras palavras, o câncer pode ser o mal necessário para te tornar mais vivo.


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