Folha de S. Paulo


Minhocão e Maluf: 'Imbecil e idiota'

A Câmara Municipal de São Paulo deu na semana passada um importante passo para a eliminação definitiva do Minhocão como via de trânsito. Ao aprovarem o seu fechamento também aos sábados (hoje já não funciona aos domingos e às noites), os vereadores revelam a irrelevância da "ligação Leste-Oeste" para o tráfego, face ao violento impacto para a qualidade de vida de milhares de moradores da região central. Confirma-se assim a clara tendência de corrigir, ainda que com décadas de atraso, a trágica herança da ditadura militar ainda de pé no coração de São Paulo.

A natureza autoritária da via elevada, metaforizada no nome que homenageia o ditador Costa e Silva (1967-69), está no seu DNA: ela só pôde ser construída numa época de supressão das liberdades, quando a população afetada não teve como manifestar toda a indignação. É simbólico também que o seu fechamento em períodos específicos tenha começado em 1989, imediatamente depois da implantação da nova Constituição democrática (1988).

O conjunto de avenidas expressas cortando e circundando o Centro de São Paulo foi planejado no início dos anos 1950, a partir de um projeto do influente urbanista americano Robert Moses, contratado em 1949 pelo prefeito Linneu Prestes, como descrevi nesta coluna em 7 de outubro de 2013.

O plano de Moses só começou a ser implantado quinze anos depois, quando foi eleito o prefeito Faria Lima (1965-1969). Ele realizou a ligação Norte-Sul (o conjunto que vai, mudando de nome, da avenida Tiradentes até depois do aeroporto de Congonhas) ao abrir a av. 23 de Maio.

Indicado prefeito pela ditadura, sem dever o mandato aos eleitores, Paulo Maluf (1969-1971) tomou posse e decidiu implantar a via Leste-Oeste como um relâmpago, sem qualquer pesquisa que justificasse a obra (como já destacava a imprensa na época ). Erigida como um viaduto de cerca de 3km junto a uma densa área residencial, a obra usou dinheiro destinado à construção do Metrô e ainda cravou suas estacas onde deveria correr o túnel da Linha 2, adiando assim por vários anos a inauguração do ramal mais importante do Metropolitano. O Minhocão ficou pronto em um ano.

As consequências nefastas começaram a ser sentidas imediatamente, como uma bomba de nêutrons (que destrói a vida humana mas mantém as construções): o valor do aluguel caiu 70% ainda durante a obra, e não se recuperou mais; houve um grande êxodo de moradores, fechamento do comércio, poluição sonora e do ar.

O pior foi que a redução dos congestionamentos na região durou menos de dois anos. Em seguida eles voltaram, ocupando então a avenida São João, embaixo, e também a rota elevada, em cima. Exatamente como previsto nos estudos sobre "trânsito induzido", que um bom engenheiro de trânsito deveria conhecer. Não era o caso do prefeito Maluf.

Logo em seguida começaram os movimentos pela demolição da via mas sempre confrontados com o argumento de que ela seria necessária para o fluxo dos automóveis. Após a redemocratização, no entanto, os fechamentos vêm demonstrando que sem aquela opção, o trânsito encontra outras rotas. Como vai acontecer agora aos sábados e posteriormente em novos períodos.

Sempre que se fala de fechar o Minhocão, surge a demanda de uma avenida alternativa para escoar o trânsito. Os projetos preveem assentar essa via junto aos trilhos de trens que correm no mesmo sentido Leste-Oeste, um pouco mais ao norte, onde a CPTM passa por Lapa, Barra Funda, Luz e Braz.

Há duas ideias para essa via: uma sugere fazer a avenida paralela à linha férrea (como ocorre hoje com a Marginal Pinheiros e a Linha Esmeralda) e outra prevê a mudança da linha de trem da superfície para o subsolo (como um metrô) e o asfaltamento de uma avenida por cima. Ambas resultam em gastos de tempo e dinheiro: sem enterramento dos trens, é uma obra de quatro anos e R$ 700 milhões; enterrando, R$ 3,5 bilhões e quinze anos.

Se a cidade fechar o Minhocão já, não há gasto com obra e nem perda de tempo. Formado engenheiro pela mesma Escola Politécnica que Maluf cursou, mas tendo estudado engenharia de trânsito, Roberto Scaringella (morto em 2013) apresentou ao então prefeito José Serra, em 2005, apontamentos feitos com a arquiteta Regina Monteiro, que indicavam ser possível fechar o Minhocão sem construir uma nova avenida.

Segundo os cálculos que expôs na época, grande parte do trânsito Leste-Oeste usa avenidas abertas depois do Minhocão: Marginal Tietê, Avenida do Estado, Marquês de São Vicente, maiores e mais eficientes. Quem usa o Elevado busca principalmente áreas do Centro, hoje menos congestionado do que nos anos 1960. Por isso, o trânsito do Minhocão poderia ser absorvido pelas ruas próximas à via elevada se forem eliminadas as vagas de estacionamento nas ruas (como a Zona Azul).

Segundo Scaringella, o eventual congestionamento inicial se diluiria em cerca de seis a doze semanas, à medida em que os motoristas se acostumem com os novos roteiros.

Novas opções viárias criam congestionamento, como mostram os estudos de trânsito: carros que ficariam em casa, diante da fluidez inicial, vão para a rua, aumentando o trânsito agregado. Inversamente, o fechamento de ruas reprime engarrafamentos: automóveis que iriam para a rua, diante da falta de fluidez, são deixados em casa, as pessoas buscam outros modos de deslocamento. O problema é que essa ciência foge à capacidade de entendimento de carro-dependentes e carro-cêntricos.

É o caso do ex-prefeito Paulo Maluf. Agarrado ao Minhocão como se fosse o seu "Retrato de Dorian Gray", ele perdeu a compostura em entrevista a "Veja São Paulo", onde chamou de "imbecil e idiota" quem defende o fechamento de sua criatura. O dicionário ensina que as duas palavras são sinônimos, referem-se a quem tem "inteligência curta ou pouco juízo". Em se tratando de trânsito e urbanismo, "imbecil e idiota" são adjetivos apropriados para quem construiu uma excrecência como o Minhocão.


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