Folha de S. Paulo


A ciclovia escondeu o ônibus

A polêmica em torno das ciclovias tirou a atenção que a opinião pública deveria dar aos ônibus, que carregam diariamente um contingente correspondente a quase metade da população paulistana. Enquanto a cidade discutia se a prefeitura deveria continuar tocando a implantação de caminhos para bicicleta (opinei que sim neste espaço), teve pouco impacto o anúncio do projeto de nova rede de coletivos municipais, licitação que vai custar cerca de R$ 100 bilhões ao longo dos próximos 20 anos.

O secretário Jilmar Tatto anunciou as características estruturais desejadas para a nova malha de ônibus do município. A Folha antecipou vários elementos ao longo das últimas semanas. Há muitas questões que merecem atenção. Tão importantes que é até mesmo previsível uma batalha jurídica ao longo dos próximos meses. Pelo que relaciono em seguida, acho impossível que a licitação transcorra na velocidade que a prefeitura anuncia (até julho):

1) A prefeitura quer uma concorrência internacional para aumentar a disputa e a oferta de capital para os investimentos que deseja ver realizados pelos ganhadores. Nenhum grupo econômico que atua na atual rede municipal de ônibus tem dinheiro para atender os requisitos feitos pela prefeitura. Ou seja, a prefeitura quer forçar empresas familiares a abrirem mão do controle de um negócio bilionário que dominam há várias décadas. É provável que resistam. A forma tradicional de fazer isso é fomentar ações judiciais e suscitar questionamentos do Tribunal de Contas do Município.

2) Nos últimos meses, a prefeitura atende exigência do Ministério Público do Trabalho ao transformar as cooperativas em empresas, explicitando o fato de que alguns cooperados dominaram o negócio das vans. Agora, na nova licitação, só podem concorrer empresas. Isso foi feito sem resolver a temida, mas pouco discutida contaminação de cooperativas pelo crime. Assim, se nada for feito, os paulistanos poderão continuar submetidos ao mesmo risco, agora de empresas ligadas ao crime organizado. Só muda o CNPJ.

3) Empresas pagam cerca de 30% de impostos a mais do que as cooperativas. Ao mudar seu estatuto, os donos de vans e micro-ônibus estão tendo custos maiores. Alegam prejuízo. Isso impacta o valor da passagem de cerca de 50% de todos os passageiros transportados. É uma bomba prestes a explodir em época em que a prefeitura alega, de novo, problemas de caixa.

Por fim, o sistema que será licitado foi bolado para funcionar sobre uma eficiente rede de corredores de ônibus, prometida pela campanha de Haddad. Ocorre que as obras não ficarão prontas até o fim da licitação; pouco será terminado até a eleição e é improvável até que o conjunto completo fique pronto no próximo mandato (seja quem for eleito). Pior, os novos corredores paulistanos serão mais parecidos com os atuais: com cruzamentos e poucas áreas de ultrapassagem.

A dificuldade de implantar os corredores prometidos em 2012 ajuda a explicar a pressa em implantar mais faixas exclusivas do que o plano original, em 2013, e o estardalhaço em torno das ciclovias (repito, fundamentais para uma cidade melhor). É o que na guerra se chama "cortina de fumaça".

Por isso, é tão urgente, agora que a Justiça liberou as obras de ciclovias, olharmos para os ônibus.


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