Folha de S. Paulo


Algumas novas considerações sobre o Minhocão

Ao escrever a coluna de segunda-feira passada (30.set) para o caderno "Cotidiano", deixei algumas questões para depois, pensando em voltar ao tema. No dia seguinte à publicação, a coluna foi homenageada com duas cartas no "Painel do Leitor". Em agradecimento a Luiz Gornstein e Sebastião Marcio Cardoso Gomes e aos outros que se interessam pelo tema, traço aqui algumas outras considerações:

1. A história do Minhocão começa com o norte-americano Robert Moses, um dos mais influentes criadores de planos viários para grandes cidades, especialmente em Nova York, na primeira metade do século 20. Lá, seus projetos de grandes avenidas moldaram a cidade para o fluxo dos automóveis mas provocaram forte reação na população. Foi como resposta à concepção "carrocêntrica" de suas grandes obras que a escritora Jane Jacobs começou o trabalho que resultou no livro "Morte e Vida das Grandes Cidades", obra que ajudou a salvar Nova York da influência de Moses mas que começou a ser mais conhecida em São Paulo muito anos depois que seus seguidores brasileiros já tinham espalhado minhocões por todo lado.

Moses foi contratado pelo prefeito paulistano Linneu Prestes, em 1949, para criar um plano de avenidas para a cidade. Entre elas, incluiu uma ligação leste-oeste atravessando o centro pelo leito da avenida São João, passando por quadras densamente povoadas e de grande atividade econômica.

O prefeito Faria Lima, eleito em 1965, estava decidido a implantar a obra, entre outras ideias de Moses que ele realizou (a 23 de Maio, por exemplo, chamada ligação norte-sul). Mas segundo conta o arquiteto Candido Malta, professor emérito da FAU-USP, Faria Lima desistiu diante do alto custo das indenizações que teriam que ser pagas para implantar a avenida no nível do chão, cortando aquelas áreas valorizadas. Projetistas da prefeitura então submeteram a ele uma versão elevada, com o mesmo traçado. Faria Lima teria recusado temendo o desgaste de popularidade. Ainda assim, mandou um projeto à Câmara dos vereadores, para uma eventual construção em outra administração.

Ao fim de seu mandato, em 1969, a ditadura militar havia mudado as regras do jogo político. O prefeito de São Paulo agora passava a ser nomeado pelo ditador, não precisava do voto dos cidadãos. O indicado pelo Marechal Costa e Silva foi Paulo Maluf. Ao assumir, o jovem prefeito decidiu implantar a obra recusada (ou adiada) pelo antecessor. E à moda de Maquiavel ("As más notícias todas de uma vez"), implantou o Minhocão em onze meses de obra acelerada.

Já naquele momento a obra não se justificava por qualquer estudo de demanda viária, como destacou o texto "Elevado, o triste futuro da avenida" , publicado em 1/12/1970, no jornal "O Estado de S.Paulo". O texto mostra como nenhuma pesquisa de origem e destino amparava a obra. Além disso, com visão míope, a prefeitura drenou para uma construção sem valor estratégico um dinheiro que poderia ter investido no metrô (até então, a Companhia do Metropolitano era municipal). Recomendo a leitura do tópico "Minhocão" na Wikipedia.

2. Para o bem ou para o mal, uma intervenção urbana da magnitude de um Minhocão ou de sua eliminação leva muitos anos. Foram 20 até ele ser erigido. Logo de cara surgiu o desejo de desmonte, que já dura 43 anos: a população da cidade nunca se acostumou com aquela aberração urbanística. Desde meados dos anos 1970, ele fica fechado à noite; desde os anos 1980, fecha das 21h30 as 6h, e o dia todo aos domingos e feriados. Tudo para mitigar os danos.

A demora que parece muitas vezes meramente burocrática é também uma forma de defesa da sociedade, é o que permite à opinião pública se manifestar, discutir, debater, buscar um consenso. Talvez o processo pudesse ser mais rápido, mas a demora é um jeito de amadurecer uma ideia. Por isso, discordo do leitor Luiz Gornstein quando diz que discutir o destino do Minhocão enquanto não estiver finalizada a obra que o substituirá é "masturbação mental". Com todo o respeito e gratidão a quem dedicou seu tempo a discutir o tema que propus na coluna, digo que no caso do urbanismo, o exercício de imaginação não se esvai, ao contrário, nos deixa mais perto da fecundação: é projetando e discutindo agora a futura ligação leste-oeste que podemos pensar que ela fique pronta em quatro ou cinco anos (em um cenário) ou 15 a 20 (em outro).

Também discordo da ideia de que o Concurso Prestes Maia feito pela prefeitura durante a administração de José Serra tenha sido "dinheiro no lixo": parte dos arquitetos que apresentaram propostas para a consulta pública chamada "Arco do Tietê", convocada agora pela administração Haddad, se debruçou sobre o tema por causa daquele concurso; pelo menos um dos projetos que detalha a avenida sobre o leito atual dos trilhos dos trens entre Lapa e Brás ficou pronto, nesse trecho, naquela oportunidade. O tempo e a discussão em torno dos projetos permite seu amadurecimento e a sobrevivência das mais consistentes.

3. Diversas cidades do mundo estão desmontando seus minhocões. As vias elevadas, tão ao gosto dos anos 1960, ficaram sob crítica exatamente pelo dano que causam ao tecido urbano e social. Só um regime autoritário como o brasileiro na época e o chinês de hoje conseguem enfiar um minhocão pela goela da população.

No Brasil, o caso mais comentado de superação de uma via elevada tem sido o do High Line, jardim suspenso sobre uma pequena via férrea, que servia para o abastecimento de indústrias. Como seus próprios criadores disseram ao visitar São Paulo duas semanas atrás, as dimensões são muito diferentes: o nova-iorquino é uma minhoquinha de anzol, perto do paulistano. E essa diferença impõe a necessidade de uma reflexão profunda sobre diferenças e semelhanças e possíveis lições que o caso americano pode dar aos paulistanos.

Por seu tamanho e impacto maiores para o tecido urbano, um outro exemplo norte-americano merece ser estudado pelos paulistanos: a estrada estadual 93 entrava no coração de Boston em via elevada, causando todos os males que o Minhocão causa ao centro paulistano e, também como aqui, era uma via importante para o fluxo de veículos. A cidade não suportava os danos causados pela avenida e os administradores não viam solução para o volume de trânsito apenas transferindo-o para vias existentes.

Depois de um longo debate público, chegou-se ao consenso em 1982: o elevado seria substituído por um túnel de 5,6 km de extensão e, quando este ficasse pronto, o longo viaduto derrubado daria espaço a um conjunto de praças e espaços públicos amigáveis. Consenso criado, a implantação do projeto se estendeu por cerca de 25 anos, diluindo seu custo por mais de uma administração municipal.

A obra, apelidada "Big Dig" (grande escavação, em referência ao túnel subterrâneo), é a maior do gênero na história recente dos EUA. Foi envolvida em muitas acusações de sobrepreço etc. (a crônica de sua construção lembra a história de grandes obras públicas brasileiras), mas jamais foi atacada como solução urbanística e viária, nunca foram questionados os benefícios que a derrubada do elevado teria para a cidade.

Enquanto Boston inaugurou alguns anos atrás o seu "Big Dig", São Paulo apenas inicia a discussão do que fazer com o seu "Big Dick" (Minhocão).


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