Folha de S. Paulo


'Vazante' eleva o nível do debate sobre escravidão no Brasil

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Cena de 'Vazante', filme de Daniela Thomas
Cena de 'Vazante', filme de Daniela Thomas

Assisti "Vazante" tentando entender por que integrantes do movimento negro reclamaram do filme durante o Festival de Brasília. Não consegui encontrar o motivo. O filme expõe toda a crueldade da escravidão brasileira e faz isso de forma madura, sem ilusões ou sentimentalismo.

A diretora Daniela Thomas disse à Folha que tentou evitar o costume dos filmes americanos de retratar senhores escravistas como psicopatas. Essa decisão elevou o filme a um novo patamar das discussões sobre a escravidão brasileira.

Perto de "Vazante", "Quilombo de Palmares", por exemplo, é uma obra da quarta série do primário. Os brancos do filme de 1984 são em geral fúteis ou assassinos sádicos; os negros, heróis virtuosos e progressistas.

Já em "Vazante", apesar da maldade da escravidão permear a história, nenhum personagem é particularmente mau. Senhores, escravos, libertos –todos ali são miseráveis. O espectador sente pena de todos eles. Estão todos exaustos da falta de conforto e da miséria que dominava o mundo até a Revolução Industrial. Mesmo o personagem mais rico da história, tão acostumado que está de andar descalço na mata, não consegue se acostumar a calçar sapatos.

Ninguém ali se sente capaz de mudar a própria vida, o que dirá mexer num costume na época milenar como a escravidão.

Essa visão da "banalidade do mal" é o aspecto mais interessante do filme. Assim como Hannah Arendt advertiu sobre o Holocausto, seria empobrecedor encarar a escravidão como um simples ato de psicopatia. O filme mostra pessoas empurradas a viver num sistema que nenhuma delas havia criado e do qual ninguém sabe muito bem como escapar.

A principal crítica durante o Festival de Brasília foi a falta de protagonismo dos personagens negros. O protagonismo é de fato a grande novidade da historiografia.

Diferente dos historiadores marxistas dos anos 1960 a 1980, que retratavam negros como coisas (que ou obedeciam aos brancos ou morriam lutando), a maioria dos estudos de 1990 para cá mostrou negros como indivíduos que planejavam, negociavam, moviam ações na Justiça, enriqueciam, ou seja, protagonizavam ações que nem sempre iam contra a instituição da escravidão.

Mas esse protagonismo está presente no filme. Há o africano que se recusa a trabalhar, há estranheza entre os escravos abrasileirados e os recém-chegados, há o negro liberto e próspero que sabe administrar a fazenda e "domar os escravos".

Acho até que a diretora pagou um bom pedágio ao movimento negro. Sorrisos e cumprimentos, por exemplo, são tão raros no filme que as cenas perdem naturalidade. Talvez por temer críticas de ativistas, Daniela Thomas evitou qualquer pitada da escravidão branda que Gilberto Freyre retratou.

Um pouco mais de afeto, negociação e laços de compadrio (frequentes nos documentos históricos) tornariam a reconstituição histórica ainda mais precisa, sem o risco de aderir à tese de "escravidão suave" de "Casa Grande & Senzala".

Mas esse detalhe não tira o brilho de "Vazante", um grande filme que merece aplausos do movimento negro e dos brasileiros em geral.

Ricardo Borges/Folhapress
Rio de Janeiro, Rj, BRASIL. 24/10/2017; Retrato da diretora Daniela Thomas que estreia o filme
Daniela Thomas, diretora de "Vazante", no Instituto Moreira Salles do Rio

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