Folha de S. Paulo


Como seria um movimento negro liberal?

Bruno Santos/Folhapress
PARATY,RJ, BRASIL, 28-07-2017: Terceiro dia da 15ª FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Na foto, a professora Diva Guimarães (77). (Foto: Bruno Santos/ Folhapress) *** FSP-ILUSTRADA *** EXCLUSIVO FOLHA***
A professora aposentada Diva Guimarães, 77, cujo discurso emocionou o público da Flip

É difícil não se emocionar com o discurso da professora Diva Guimarães no debate com Lázaro Ramos na Flip. Desde os 5 anos, num colégio interno de Curitiba, ela ouvia das freiras que negros eram preguiçosos. "Sobrevivi como brasileira porque tive uma mãe que fez de tudo, passou por tudo que é humilhação para que nós estudássemos", disse ela durante sua participação, que foi vista mais de 10 milhões de vezes na internet.

Mas senti um pouco de tédio com o comentário Lázaro Ramos após o discurso da professora. "Precisamos investir em educação pública de qualidade", disse ele. Faz o quê, mais de um século que estamos repetindo esse lugar-comum?

Liberais costumam ter pouco entusiasmo com o movimento negro porque ele em geral é estatista: os ativistas negros pedem mais leis, mais impostos, cotas, investimentos em universidades públicas, enfim, mais Estado.

Mas isso não elimina a possibilidade de um movimento negro liberal. Uma coisa é concordar com a professora Diva Guimarães e constatar que o racismo dificulta a ascensão social dos negros; outra, bem diferente, é achar que vamos resolver esse problema investindo bilhões em sistemas de educação dirigidos por políticos.

Um movimento negro liberal se apoiaria em dois fundamentos. O primeiro é um ceticismo em relação aos poderes do Estado em educar e ajudar os pobres. É fácil repetir a ladainha da escola pública de qualidade se você é um ator global e seus filhos estudam num colégio particular. Mas os negros pobres não querem esperar mais algumas décadas (sendo otimista) até que a escola pública funcione no Brasil. Melhor defender sistemas de vouchers —em que, em vez de gastar tanto em escolas públicas, o governo dá o dinheiro aos pobres para que escolham uma escola privada.

O segundo fundamento é associativismo, financiado, por que não, por doações privadas e voluntárias. ONGs com boa reputação poderiam gerir fundos bilionários alimentados por doações de empresas e magnatas, e financiar cursinhos comunitários ou bolsas para estudantes negros nas melhores universidades.

Já existem iniciativas similares —como a Educafro. Talvez os diretores dessa ONG não se deem conta, mas boa parte de seu ativismo é liberal. Eles negociam com faculdades privadas a concessão de bolsas para negros e facilitam o acesso dos estudantes a elas. Repare que não há governo nessa história. Da mesma forma, a Afro Negócios é uma rede que tenta fortalecer empresários negros e compartilhar dicas e oportunidades.

O movimento negro liberal, na verdade, tem uma tradição no Brasil. Eram muito comuns, no século 19, irmandades e associações negras, como a Associação Beneficente Socorro Mútuo dos Homens de Cor e a Sociedade Emancipadora. Esses grupos socorriam negros em dificuldade, mantinham escolas e arrecadavam dinheiro para a compra de alforrias. Muito antes do governo abolir a escravidão, as sociedades de ajuda mútua já tinham libertado milhares de escravos no Brasil.


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