Folha de S. Paulo


Flá-flu político impede análise econômica mais rigorosa

Ricardo Stuckert
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Lula
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Lula

Vem se tentando transformar em lugar comum a tese de que o crescimento econômico dos anos 2000 foi fruto das condições micro e macroeconômicas criadas no Brasil durante os dois governos de Fernando Henrique Cardoso e primeiro governo Lula. A partir de 2008, o Estado teria, segundo essa análise, desempenhado um papel exagerado na economia, levando o país ao colapso. A solução para a crise atual estaria, portanto, na volta e no aprofundamento do modelo adotado nos anos 1990.

Embora careça de sustentação empírica, esta hipótese tampouco é de fácil refutação: trata-se de um argumento com temporalidades e relações de causa-efeito bastante difusos. A tese não explica, por exemplo, porque a criação das tais condições favoráveis desde os anos 1990 só teria começado a surtir efeito sobre as taxas de crescimento da economia em meados dos anos 2000.

O crescimento econômico, que havia sido em média de 2% ao ano entre 1995 e 2003, subiu para 5,8% em 2004 e 3,2% em 2005 graças a um boom nas exportações. Somente a partir de 2006 o mercado interno assume papel preponderante no crescimento mais acelerado da economia brasileira. No biênio 2006-2007, as exportações cresceram 11,5% no acumulado, ante 12,6% de crescimento no consumo das famílias e 23,5% no investimento, por exemplo.

A tese também não esclarece porque a mudança da política econômica em direção a um modelo considerado equivocado teria sido sucedida por um ritmo ainda mais acelerado de crescimento, que culmina em uma expansão de 7,5% da economia em 2010, para só então fracassar —levando-nos primeiro a uma desaceleração e, somente em 2015, um tanto quanto repentinamente, à maior crise de nossa história.

Em outras palavras, quanto tempo o modelo econômico defendido leva para gerar resultados favoráveis e o modelo considerado equivocado para dar errado? A resposta a essa pergunta parece ser sempre dada a posteriori, a partir da observação do desempenho passado da economia, deixando o ônus da prova para os que tentam contestá-la.

Tampouco está claro como as teorias que fundamentam essa abordagem são compatíveis com um crescimento simultâneo do consumo das famílias e dos investimentos privados durante os anos 2000, bem como com a combinação de salário mínimo maior, queda na desigualdade salarial e geração de empregos formais no mercado de trabalho.

Parece haver evidência empírica suficiente do efeito do ciclo de alta no preço das commodities e das políticas de estímulo ao mercado interno —valorização do salário mínimo, universalização de programas de transferência de renda, acesso a crédito e expansão acelerada dos investimentos públicos entre 2006 e 2010— sobre o crescimento econômico e o dinamismo do mercado de trabalho nos anos que se seguiram. Reconhecer tais evidências não significa acreditar que aquele processo poderia durar para sempre ou que estava livre de limites e desafios.

As esperanças e frustrações com os rumos da economia brasileira na última década pedem diagnósticos que ousem ir muito além do flá-flu político. Afinal, se combinar crescimento econômico, estabilidade de preços e da dívida pública, redução das desigualdades e sustentabilidade ambiental dependesse apenas da fidelidade a um receituário simples e já velho conhecido de todos, países ricos e pobres ao redor do mundo não estariam enfrentando tantas contradições e dificuldades nos dias de hoje.


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