Folha de S. Paulo


Menos Estado de bem-estar social leva a mais Estado penitenciário

Avener Prado/Folhapress
Presos ocupam telhado do presidio de Alcaçuz, na cidade Nísia Floresta, durante o 5º dia de rebelião na maior penitenciária do RN
Presos ocupam telhado do presidio de Alcaçuz, na cidade Nísia Floresta, durante rebelião na maior penitenciária do RN

Depois de 134 mortes registradas nos últimos 15 dias em prisões brasileiras, o presidente Michel Temer anunciou na terça-feira (17) a liberação das Forças Armadas para atuar em presídios estaduais, lembrando os tempos da monarquia, que reservava ao Exército tarefas típicas dos capitães do mato, como a prisão de escravos em fuga.

Além da falta de preparo dos militares para esse tipo de situação, a medida recebeu a mesma crítica que o anúncio da abertura de novas vagas em prisões feito anteriormente: nenhuma delas ataca a origem do problema.

Como bem descreveram Julita Lemgruber e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo no artigo "Show de horrores" publicado nesta Folha em 10/01/2017, não há solução estrutural para o problema prisional que não passe pela redução do número de presos provisórios, cuja maior parte está presa ilegalmente, e pela revisão da atual política de drogas, que, além de superlotar presídios com usuários e pequenos traficantes, confere cada vez mais poder a facções criminosas.

A experiência internacional aponta uma terceira precondição para evitar o problema da superlotação carcerária, algo que certamente não está no horizonte do governo Temer ou, o que é ainda mais grave, do debate político-econômico brasileiro atual.

Conforme sugere o estudo empírico seminal dos sociólogos Katherine Beckett e Bruce Western, que utiliza dados dos Estados norte-americanos entre 1975 e 1995, a taxa de encarceramento costuma ser maior onde o Estado de Bem-Estar Social é mais fraco.

A conclusão dos autores é que a redução dos programas sociais nos EUA durante os anos 1980 e 1990 refletiu a emergência de um novo sistema de administração do que chamam de "a marginalidade social".

O achado vai na linha do que havia exposto o sociólogo Loïc Wacquant em "As prisões da miséria".

Em vez da redução da intervenção estatal na vida social, a opção por "menos Estado" econômico e social, que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva nos vários países, leva à necessidade de "mais Estado" policial e penitenciário.

As evidências apresentadas por Richard Wilkinson e Kate Pickett no best-seller "The Spirit Level", publicado em 2009, parecem conferir generalidade a tais argumentos. Os dados compilados para um conjunto de países ricos indicam que, quanto maior o nível de desigualdade, maior também é a taxa de encarceramento por habitante.

O cruzamento de dados mais recentes de encarceramento apresentados pelo ICPR (Institute for Criminal Policy Research) com o índice de Gini divulgado pelo Banco Mundial sugere que essa relação positiva vale para o conjunto de países do G20 e que o Brasil não foge à regra.

Em uma sociedade como a nossa, que nunca deixou de estar entre as mais desiguais do mundo, a opção por medidas de redução estrutural da rede de proteção social, em vez da via da tributação mais justa e do fortalecimento do Estado de bem-estar social, renova a escolha por uma abordagem exclusivista e punitivista de administrar a marginalidade social.

A proteção aos mais vulneráveis sempre pode caber no Orçamento, mas o genocídio jamais caberá na civilização.

Enquanto a insustentabilidade do sistema previdenciário em meio à elevação da expectativa de vida for vista pela maioria como mais dramática do que a insustentabilidade de um sistema penitenciário em meio à produção de um número cada vez maior de excluídos, estaremos condenados à barbárie.


Endereço da página:

Links no texto: