Folha de S. Paulo


Camisa de força no governo dos outros é refresco

A lei 13.332/2016, aprovada pelo Senado na sexta-feira passada (2), ao modificar os limites para a abertura de créditos suplementares sem necessidade de autorização do Congresso, levou à falsa impressão de que, dois dias após o impeachment, o crime econômico criado para destituir a presidente eleita estaria oficialmente abolido.

Ainda não é bem assim. Os decretos de crédito suplementar sempre foram previstos por lei e autorizam o governo a reforçar uma despesa aprovada no Orçamento mediante o cancelamento de outra. O limite para tal remanejamento de recursos era de 10% do valor da despesa e foi ampliado para 20%.

A estratégia da acusação pode estar na origem das interpretações equivocadas. Ao abandonar o pretexto aceito pelo ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha para dar prosseguimento ao processo de impeachment —em favor de uma tese genérica de que o crime estaria no desrespeito ao Poder Legislativo em suas prerrogativas orçamentárias—, os senadores abriram espaço para a atual perplexidade de parte da opinião pública.

Um dos dois pretextos sobre os quais deveriam se posicionar os senadores seria a incompatibilidade entre três decretos de crédito suplementar e a meta fiscal aprovada pelo Congresso. A defesa teve êxito em demonstrar que o remanejamento de recursos –em valor muito inferior ao volume contingenciado– não elevou o total de despesas do governo em 2015.

A criminalização da política fiscal e o uso e abuso das críticas ao conjunto da obra geraram uma tal confusão na opinião pública que até mesmo uma razoável flexibilização no teto de remanejamento viralizou na internet sob o slogan "pedalada não é mais crime".

Além da confusão com o outro pretexto usado no golpe parlamentar do dia 31/8/2016, no qual atrasos no pagamento a bancos públicos configurariam operações de crédito ou "pedaladas", a lei aprovada na sexta-feira não fez com que deixasse de ser crime a assinatura de decretos de crédito suplementar. Nunca foi crime remanejar recursos sem a autorização do Congresso, desde que respeitados os limites previstos por lei. O pretexto sempre foi apenas um pretexto.

A defesa já havia esclarecido até que considerar um ato até então regular como crime não poderia ser usado para punir retroativamente. Ao criar nova jurisprudência, o perigo passou a ser, como apontado por alguns senadores, o afrouxamento das previsões de deficit fiscal enviadas ao Congresso para evitar eventuais punições. Parece ter sido o caso das propostas aprovadas pelo atual governo para 2016 e 2017.

No entanto, o casuísmo jurídico utilizado na luta pelo poder não deve sequer se consolidar. Camisa de força no governo dos outros é refresco. A ameaça do senador Aécio Neves de sair do governo caso não seja aprovada a PEC 241 –que retiraria por 20 anos do Legislativo o poder de aprovar o tamanho do Orçamento anual– demonstra que a disputa pelo direito de conduzir a política econômica continua em aberto.

Nas guerras, costuma-se dizer que a primeira vítima é a verdade. Na guerra desencadeada pelo parlamentarismo de ocasião à presidente eleita, foram fortalecidas ideias que, daqui a pouco, nenhum dos lados terá interesse em defender. E o que é pior: a sociedade e suas aspirações parecem cada vez mais alienadas dos rumos da política econômica do país.


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