Folha de S. Paulo


Os muros de Brasília

A independência do banco central e a delegação da política monetária para uma autoridade supostamente técnica e conhecidamente conservadora costumam ser justificadas pelo chamado viés inflacionário dos governos.

Pressionadas por preocupações de cunho eleitoral, as autoridades constituídas teriam uma predisposição a privilegiar o combate ao desemprego em detrimento do controle dos preços, o que elevaria as expectativas inflacionárias.

Isso tem servido também para fundamentar a adoção de um mandato único para o Banco Central do Brasil, que, ao contrário do banco central norte-americano, não inclui o nível de emprego entre os seus objetivos.

Já com a adoção de regras fiscais rígidas, os autonomeados guardiões da sanidade, açodados em receitar camisas de força, buscam impedir que os representantes eleitos tenham espaço para sucumbir a tentações irresponsáveis também no caso das contas públicas.

No regime de meta de superavit primário adotado no Brasil, essas restrições não se aplicam ao pagamento de juros sobre a dívida, circunscrevendo-se à geração de receitas e à realização de despesas com outras rubricas.

Apesar da rigidez e do viés pró-cíclico e concentrador de renda do regime fiscal brasileiro, este ainda permitia que o governo, desde que respeitadas as imposições constitucionais e a necessidade de aprovação do Orçamento no Congresso, escolhesse como utilizar seu espaço fiscal remanescente. Isso porque a mesma meta pode ser obtida com menos gastos com saúde, educação e benefícios sociais, ou com menos desonerações de impostos para empresários, por exemplo.

Ainda que o Ministério da Fazenda já houvesse sido delegado, na prática, para os representantes do mercado financeiro e que o ajuste fiscal já tivesse tomado o lugar do bem-estar da população enquanto objetivo central da política econômica, a inclusão da assinatura de decretos de crédito suplementar no processo de impeachment da presidente aponta na direção de blindar ainda mais a política fiscal do processo democrático.

Tais decretos, que, conforme descrevi na coluna "Os Escafandristas virão" de 31/03, foram assinados no ano em que mais se contingenciaram despesas desde a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal, serviram apenas para permitir que se gastasse mais com algumas rubricas em detrimento de outras. A criminalização de tais decretos –previstos em lei e utilizados por todos os presidentes desde então– revela a intenção de retirar agora dos governos democraticamente eleitos até mesmo a definição de prioridades na execução da política fiscal.

O desejo parece ser o de que a política econômica saia de uma vez por todas da alçada dos presidentes da República. De um lado, delega-se para a tecnocracia dos órgãos de controle os rumos da política fiscal. Do outro, delega-se para a diretoria do Banco Central –na maior parte composta por figuras com experiência prévia ou posterior no mercado financeiro– a política monetária.

E o que é ainda mais grave: o muro erguido para isolar a eco- nomia da política e eliminar o alegado viés populista dos gover- nos eleitos está sendo construído em um material muito pouco resistente aos empurrões dos finan- ciadores de campanha eleitoral e dos grupos de pressão mais influentes na imprensa e na política nacionais. De grão em grão, os patos da Paulista vão destruindo a nossa jovem democracia.


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