Folha de S. Paulo


O bebê, a água e a bacia

Há apenas dois anos, as manifestações de junho colocavam na agenda a urgência de se melhorar o transporte urbano, a saúde, a educação e outros serviços públicos. Ajudaram inclusive a presidente Dilma a aprovar no Congresso a destinação de 10% de royalties do pré-sal para a saúde e a educação.

Hoje, a pretensa agenda do ajuste fiscal propõe uma operação de desmonte do Estado de bem-estar social brasileiro, evidenciada pela ofensiva atual contra a obrigatoriedade dos gastos com saúde e educação, e o contrato social que deu origem à Constituição de 1988.

A má vontade da ortodoxia quanto ao papel do Estado não é novidade. A pergunta que não quer calar é: que erros cometidos pelo governo do PT abriram espaço para tal retrocesso?

Primeiro, não foi o excesso de intervencionismo que nos trouxe de volta para o túnel infinito da austeridade, mas sim o tipo de desenvolvimentismo –aqui desculpo-me com os imortais Raúl Prebisch e Celso Furtado por usar o termo de forma tão ampla– que orientou a política econômica desde 2011.

Entre 2004 e 2010, o Brasil conseguiu obter, juntamente com as taxas mais altas de crescimento, uma redução sem precedente das desigualdades sociais e regionais, o aumento sustentado dos salários, a elevação do nível de emprego formal, a melhoria das contas públicas e externas, tudo isso com uma taxa de inflação sob controle. O investimento cresceu em média 6,7% ao ano no período, superando até o crescimento do consumo, que foi de 4,5% anuais.

O Estado teve papel crucial para essa expansão do mercado interno, não só com as políticas de transferência de renda e salário mínimo, mas também com a ampliação dos investimentos em infraestrutura física e social. No entanto, no final do segundo mandato do presidente Lula, crescia a visão de que tal estratégia de crescimento, erroneamente tachada de "liderada pelo consumo", era insustentável. Seria necessário desviar o foco para o mercado externo, o que exigiria medidas que elevassem a competitividade da indústria e reduzissem o custo da mão de obra.

A presidente Dilma atende ao canto das sereias. Desvaloriza o câmbio, interrompe a expansão do investimento público e contrai o crédito ao consumidor, ao mesmo tempo em que subsidia a lucratividade dos empresários por meio de desonerações tributárias, controle de tarifas energéticas e crédito do BNDES.

A inflação revive, em parte pelo próprio aumento no custo de importados, e dá o tiro fatal no vilão consumo. As exportações, por outro lado, não esboçam qualquer reação, dada a crise internacional e a insensibilidade daquilo que exportamos a variações no câmbio. E assim, o investimento morre também, abraçado, como sempre, aos demais componentes da demanda.

Diante do custo das medidas e do baixo crescimento, o governo passa então a ter dificuldades de cumprir a meta de superavit primário e a estabilizar a dívida pública.

O fim da história nós conhecemos bem: manobras fiscais, mais tentativas de subsidiar margens de lucro, e o "ensaio desenvolvimentista"', parafraseando André Singer, tira da agenda as demandas por um Estado empreendedor e protetor. E ao que tudo indica, nos dedicamos agora a jogar fora, junto com a água suja do banho, o bebê, a bacia...


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