Folha de S. Paulo


Navio ancorado

Até quando deixaremos a ideologia acima das razões econômicas, do mercado e da competitividade, ancorando o grande navio do comércio brasileiro no porto das pequenas pretensões regionais?

Na cúpula do Mercosul, 15 dias atrás em Montevidéu, mais uma vez temas políticos dominaram debates e resoluções do bloco: Repúdio à espionagem dos Estados Unidos e ao bloqueio do espaço aéreo europeu à aeronave boliviana, e apoio à soberania argentina sobre as Ilhas Malvinas.

São assuntos importantes, mas as negociações comerciais capazes de alavancar atividades que geram renda e podem, de fato, fazer o país crescer, não avançaram.

As declarações finais apenas reafirmaram o apoio à conclusão da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio, parada desde 2008. Por falta de discussão, declarou-se o óbvio.
Reiteraram o compromisso de seguir negociando com a União Europeia, mas não se aprofundaram nas dificuldades para consolidar a oferta conjunta do Mercosul.

Destacaram que o objetivo atual do bloco é formar uma "sociedade comum" e que "a integração não pode ser filha do mercado". É difícil concordar com esse argumento, pois quem produz riqueza é o mercado.

A reunião evidenciou que o comércio saiu da agenda prioritária. É usado apenas como justificativa da integração. Foram apresentados números positivos das vendas intrabloco, que se multiplicaram por 12 desde a criação do Mercosul (1991), enquanto o comércio com o mundo é oito vezes maior.

Os números revelam o tamanho do equívoco: o comércio do Brasil com o Mercosul foi de US$ 53,1 bilhões em 2011 e 9% menor em 2012. Com o resto do mundo, foi de US$ 429 bilhões.

Todo o comércio do Mercosul com o mundo em 2011 (US$ 824 bilhões) representou apenas 4,6% da movimentação mundial (US$ 17,8 trilhões).

Ninguém citou qual poderia ter sido o aumento do comércio exterior, se concretizada a Área de Livre-Comércio das Américas (Alca), proposta em 1994 e abandonada em 2005. A integração liderada pelos americanos, que já previam a expansão chinesa, criaria mercado com 850 milhões de pessoas e PIB sete vezes maior que o do Mercosul.

Mesmo sem a Alca, os números do comércio do Mercosul poderiam ser maiores, se a abertura do mercado do Cone Sul fosse completa.

Tanto, que o presidente uruguaio, José Mujica, chegou a afirmar que "temos que falar tanto em livre-comércio, porque não temos livre comércio". E defendeu não só a efetivação dos acordos no âmbito do Mercosul, mas a abertura de negociações com a China, principal parceiro comercial da América Latina.

Os acordos bilaterais e regionais de livre-comércio estão dividindo as Américas do Atlântico e do Pacífico e não somos os únicos a reavaliar estratégias de integração comercial.

Comemorando 20 anos do Acordo Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta), os EUA estão estudando a relevância do bloco e uma possível reabertura de negociações para modernizar as regras acordadas. E nós, quando seremos mais pragmáticos? Quando aprenderemos a separar agendas políticas das comerciais?

A China é exemplo notório de pragmatismo econômico e comercial. Pratica um "socialismo com características chinesas", que levou a mais de uma década de crescimento na casa dos dois dígitos e a uma inserção internacional consistente, com mais de 11% do comércio mundial.

Aqui, nosso "capitalismo com características brasileiras" vai nos levando ao isolamento.

Concordo com o presidente Mujica: é preciso negociar com a China, principal destino de nossas exportações. E não podemos perder o acordo com os europeus.

Por enquanto, estamos à frente dos americanos -com o seu gás de xisto- nessa negociação que é fundamental para o comércio de produtos agropecuários. Mas não há tempo a perder.
No primeiro semestre, o saldo do comércio exterior do Brasil foi o pior de toda a série histórica do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, iniciada em 1993.

E em Montevidéu, mais uma vez, a diplomacia brasileira perdeu a oportunidade de discutir o comércio. Não perceberam que é hora de levantar a âncora do nosso navio.


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