Folha de S. Paulo


Conversa de bastidores

Nada movimentou mais esta disputa presidencial, até agora, do que a revelação da conversa de Rubens Ricupero com o jornalista Carlos Monforte, sentados num estúdio da Rede Globo à espera de condições técnicas para gravar uma entrevista na noite de quinta-feira. O ministro e o jornalista não sabiam que o encontro, por um capricho da tecnologia, estava sendo captado em vários pontos do país. Falavam com a intimidade de velhos conhecidos (Monforte é primo da mulher de Ricupero) e só depois de alguns minutos de diálogo foram avisados de que ele poderia não ser privado. Calaram-se, mas já era tarde.

Na edição de ontem, a Folha transcreveu esse diálogo com todos os detalhes. Não há como escapar à pergunta: é ético revelar uma conversa que deveria ser reservada, em que um ministro e um jornalista conversam como amigos e, nessa condição, deram-se o direito de falar o que jamais repetiriam diante de uma platéia? Eis aí uma boa questão para discutir. Em primeiro lugar, há que se considerar que Ricupero e Monforte conversavam sobre temas de interesse público. Em segundo, que eles conversavam dentro de um estúdio de TV, e deveriam saber que ao menos os técnicos ali presentes estavam ouvindo o que falavam. Em terceiro, que a conversa "vazou" e acabou sendo testemunhada por algumas dezenas, talvez centenas, quem sabe milhares de pessoas. Em quarto, que são pessoas visadas (o ministro em especial), daquelas que devem evitar até pensar nas coisas que não podem dizer em voz alta.

A Folha teve acesso a duas fitas com a conversa gravada, e teve o cuidado de reproduzir exatamente cada palavra dela. Pessoalmente, acho que o jornal agiu com correção. Não enganou ninguém para obter as fitas, nem usou qualquer expediente condenável. Simplesmente aceitou a oferta de pessoas que viram as cenas da TV, perceberam ali um fato jornalístico e providenciaram sua gravação. Foi como se o jornal aceitasse fotos feitas por um fotógrafo amador, ou o relato de alguém que presenciou um fato mas não é repórter contratado pelo jornal. Não deixa de ser notícia. E notícia de fonte limpa.

Se a Folha fez força para revelar a notícia, a Rede Globo agiu em sentido contrário. Para os milhões de espectadores do "Jornal Nacional" na noite de sexta-feira, a emissora providenciou explicações sobre o diálogo do ministro e do jornalista sem revelar seu conteúdo ou mostrar as cenas que certamente tinha à disposição. Fez mais: desmentiu uma afirmação de Lula que, sem ter tido ainda acesso à conversa, havia informado a jornalistas estrangeiros, numa entrevista coletiva convocada para a manhã da mesma sexta-feira, que Ricupero prometera colocar a polícia contra grevistas logo após a eleição de FHC. A frase não existe mesmo na conversa do ministro com Carlos Monforte. Foi a única citada pela Globo em seu noticiário.

Também na noite de sexta-feira, como já havia feito no "Jornal da Globo" da quinta, a emissora divulgou no "Jornal Nacional" um texto que afirma o apartidarismo da Globo nestas eleições e a isenção de todo o noticiário sobre o Plano Real. Na conversa de Ricupero e Monforte, transcrita na Folha, o ministro comenta sobre o "achado" que suas aparições na TV seriam para a Globo. "Porque ela (a Globo), em vez de terem que dar apoio ostensivo a ele (FHC) botam a mim no ar e ninguém pode dizer nada... Agora, o PT está começando. Mas não pode", disse o ministro.

Até o momento em que escrevo esta coluna, não se sabe aonde a história vai dar. É ainda fresca demais, inusitada demais numa campanha eleitoral para que se possa fazer previsões. De qualquer maneira, pela forma com que foi trazida a público pela maior rede de televisão do país, o (e)leitor pode avaliar por si qual o grau de comprometimento de parcela da mídia na corrida rumo ao Palácio do Planalto. Pode ser que o episódio não tire um único voto de quem quer que seja na disputa (acho difícil; o PT já ensaiava, na sexta-feira, uma exploração política sensacional sobre ela). Mas revela bastante sobre a mídia que temos aqui -e sobre quanto ela ainda precisa avançar para poder se dizer verdadeiramente apartidária e isenta diante de algo tão grandioso como uma eleição presidencial.

Mudando de assunto, acho que a Folha deve explicações a seus leitores sobre o seguinte caso: na terça-feira, o jornal publicou chamada na Primeira Página e manchete da página 1-4 para uma palestra do sociólogo Hélio Jaguaribe em que ele teria dito que é preciso "acabar com os índios" até o ano 2000. A frase do professor não apareceu inteira no jornal; suas idéias, expostas durante palestra para uma platéia de militares, foram igualmente resumidas pela Folha. No jornal, em nenhum momento Jaguaribe falava em "ano 2000". A única frase, digamos, datada do professor era: "Não vai haver índio no século 21. A idéia de congelar o homem no estágio primário de sua evolução é, na verdade, cruel e hipócrita".

Nos dias seguintes, leitores inundaram o jornal com cartas (a maior parte delas, criticando as declarações de Jaguaribe), e o jornal publicou artigos combatendo suas idéias. Boa parte desses escritos centravam fogo naquilo que parecia mais absurdo em sua fala aos militares: dizer que era preciso "acabar com os índios" até o ano 2000. Na sexta-feira, finalmente o professor ocupou espaço ele próprio na página 1-3 para explicar o que disse. Melhor dizendo, o que não disse. Jaguaribe escreveu que "o Brasil não terá índios no final do século 21 - não, como foi dito, no ano 2000, que está na iminência de ocorrer, mas seguramente até fins do próximo século". Na manchete de terça-feira, a Folha escreveu: "Jaguaribe defende fim do índio até o ano 2000".

O mínimo que a Folha deveria fazer, depois disso, seria publicar a íntegra das declarações do sociólogo na palestra aos militares, para esclarecer a questão diante dos olhos de seus leitores. Como o jornal não voltou ao tema, ficou o dito pelo não dito. Azar desses mesmos leitores. E de Hélio Jaguaribe, condenado a ter dito algo que, aparentemente, não disse. E você, leitor, pode escrever: a frase "é preciso acabar com o índio até o ano 2000" vai passar à sua biografia. Como a que diz "esqueçam tudo o que eu escrevi" já colou na de FHC, e "eu não tenho escrúpulos" deve colar na de Ricupero. Coisas de jornalismo apressado.


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