Folha de S. Paulo


Ética, ratos e outros bichos

Peço licença aos leitores da Folha para reproduzir aqui uma carta que recebi na semana passada, enviada por um veterinário de 39 anos que mora em São Paulo:

"Escrevo para pedir que você lance o olhar para um lado que ficou esquecido no caso Ricupero: o jornalista Carlos Monforte. Ninguém está analisando o que representa o poder da falta de ética dos jornalistas. Se a parabólica não tivesse captado a conversa, é óbvio que os cidadãos brasileiros não saberiam nada do diálogo em que o sr. Ricupero mostrou sua alma, teve seu lapso de lucidez.

"Pergunto se Carlos Monforte teria ou não o dever de nos informar sobre o que pensava verdadeiramente o sr. Ricupero. Quantos jornalistas, inclusive da Folha, não nos informam do que sabem, a verdade?
"Esse é o problema: a maior parte dos jornalistas, detentores do poder e dever de informar os cidadãos, não fazem seu trabalho. Eles são dirigidos pelo conceito de lealdade à sua condição social e não à cidadania, ao país e à verdade."

O leitor está coberto de razão. A conversa parabólica entre o agora ex-ministro Rubens Ricupero e o jornalista Carlos Monforte dominou o noticiário da semana, mas em nenhum momento a mídia de preocupou em fazer ela mesma um "mea culpa" e discutir seu verdadeiro papel nesse episódio. No diálogo que teve com o jornalista, o ex-ministro foi claro como água quando disse que suas aparições na Rede Globo seriam "um achado" para a emissora, já que ela não precisaria mais dar "apoio ostensivo" (são palavras dele também) ao candidato FHC. "Botam a mim no ar e ninguém pode dizer nada. Agora, o PT está começando, mas não pode."

Ora, ora, ora. Estamos diante da confissão (tornada pública) de um ministro de Estado segundo a qual a maior rede de televisão do país dá apoio por tabela, via Plano Real, a um dos candidatos à Presidência da República -e a mídia fecha boca, olhos e ouvidos, provavelmente inspirada pelo fato de que boa parte dela tem desmedida simpatia pelo mesmo candidato. A própria Rede Globo não veiculou esse trecho da conversa entre Ricupero e Monforte, reafirmando a prática de transformar em notícia apenas o que interessa a ela. Num episódio que revela muito da promiscuidade entre o poder e a imprensa, só a primeira parte levou a pior -o que mostra que poder, de verdade, quem tem é a imprensa. Especialmente o poder de se calar quando sua ética, e a ética de seus profissionais, é que estão em discussão.

A revista "Veja" que circulou semana passada publicou reportagem revelando (se é que alguém ainda não sabia) que existem emissoras de rádio e jornais do interior do país que vendem espaço para candidatos em campanha. Mas não só eles: a reportagem de "Veja" flagrou a mesma prática num programa da Rádio Globo e nas páginas do "Diário Popular", ambos com uma respeitável massa de público (o "Diário Popular" teria, segundo a revista, uma circulação de 150 mil exemplares).

Na quarta-feira, Folha e "Folha da Tarde" publicaram a mesma notícia sobre o "Diário Popular", acompanhada de explicações de seu diretor-superintendente. "Não temos espaço para todos os candidatos. Decidimos publicar informações daqueles que se dispuserem a pagar. Tenho quase absoluta certeza de que o leitor não toma aquelas informações como material jornalístico", disse Ricardo Saboya.

No "DP", uma nota de 25 linhas acompanhada de foto sai por R$ 1.000. O material não é acompanhado de anotação que o identifique como propaganda eleitoral, como manda a lei. Ao contrário do que diz o diretor-superintendente do "DP", tenho quase absoluta certeza de que o leitor não percebe que aquele não é material jornalístico. Trata-se de um abuso que fere a ética da imprensa (a que ela deveria ter, pelo menos), e contra o qual a Justiça Eleitoral não se manifestou até o momento.

Pelo menos seis leitores da Folha se incomodaram com uma reportagem publicada no jornal de domingo passado, na página Especial-3 do caderno Supereleição, com o título: "Lixo do comitê de FHC revela doadores". O que incomodou os leitores incomodou a mim também: a reportagem conta com detalhes que funcionários do comitê do candidato, em Brasília, acondicionam o lixo produzido durante a semana em sacos plásticos. Num dia determinado, os papéis (especialmente eles) são queimados num aterro, em local proibido.

A questão, entretanto, não é ambiental: a reportagem da Folha recuperou parte do lixo que não foi consumido pelo fogo e revelou aos leitores uma lista de supostos doadores de dinheiro para a campanha tucana. Mas a própria reportagem dizia, em seu terceiro parágrafo: "A legislação eleitoral permite que os candidatos mantenham em sigilo os nomes dos financiadores de suas campanhas. Apenas nos casos em que há suspeita de irregularidade o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) pode requisitar as prestações de contas".

Eis aí o problema: a Folha revirou o lixo de FHC para revelar algo que nem o TSE pode fazer sem solicitar ao candidato. É invasão de privacidade, repetiram os leitores. Que, irritados com o jornal, chegaram a chamar os repórteres de "ratos" (dois deles). Se a semana não tivesse sido dominada pelo noticiário parabólico e pela sucessão no Ministério da Fazenda, o abuso da Folha teria dado o que falar.

Por falar nisso, sumiu dos jornais (da Folha, em especial, que foi quem mais dedicou espaço ao assunto) a "denúncia" de que a campanha tucana usaria os serviços de um assessor do presidente americano, James Carville. Esta Folha> chegou a noticiar com estardalhaço que a assessoria, desde que não formalizada através de pagamentos, seria ilegal. A menos que Carville estivesse recebendo bônus eleitorais de FHC, algo difícil de imaginar. Enfim, antes mesmo das devidas explicações aos leitores, o assunto sumiu dos jornais.
É só mais um daqueles que desaparecem como que por encanto.

A jornalista Sônia Mossri, repórter da sucursal de Brasília, teve o cuidado de consultar a fita gravada durante a palestra do sociólogo Hélio Jaguaribe para uma platéia de militares -aquela que gerou farto noticiário na Folha, pelas declarações de Jaguaribe de que seria preciso "acabar com o índio", e que comentei na coluna de domingo passado.

Sônia Mossri, responsável pela reportagem que deu o pontapé inicial na polêmica, informa que a frase integral de Hélio Jaguaribe foi a que segue: "É preciso desmistificar formas de congelamento da antropologia. Não existe a menor possibilidade de permanência das comunidades primitivas. É preciso acabar com o índio. Não vai haver índio no ano 2.000".

Reli a reportagem assinada por Sônia Mossri, e o problema está (a repórter reconhece) em que essa frase de Jaguaribe não aparece íntegra. O texto diz que Jaguaribe disse "que é preciso acabar com o índio' até o ano 2.000 e promover sua integração mediante escolarização". O título que o jornal acrescentou na edição, e a chamada na Primeira Página, ajudaram a colocar lenha na fogueira: "Jaguaribe defende o fim do índio até o ano 2.000", escreveu o jornal. Não foi, e a fita consultada agora por Sônia Mossri revela isso, exatamente o que o sociólogo afirmou em sua palestra. O jornal, mantenho o que escrevi na semana passada, fez jornalismo apressado sobre as idéias de Hélio Jaguaribe.


Endereço da página: