Folha de S. Paulo


Os números que espantam

Pelo interesse que despertou nos leitores da Folha, o caderno "Olho no Voto", que circulou na edição do domingo passado, mostra que o jornal poderia (melhor dizendo, deveria) ter investido mais tempo, espaço e esforço na supereleição. Não que a cobertura da Folha seja pequena -dados do Datafolha, também publicados no domingo passado, mostram que ela é o jornal que mais páginas dedica à sucessão presidencial. O problema é exatamente esse: para a Folha (toda a imprensa, eu diria), a eleição de 3 de outubro quase que se resume a uma disputa entre Lula e FHC. Mas, para o leitor, vai muito além disso.

Durante a semana, recebi várias cartas e telefonemas sobre o caderno "Olho no Voto", ou ainda com comentários sobre a (falta de) cobertura da Folha para a disputa no Senado, na Câmara dos Deputados e assembléias estaduais. A publicação do caderno certamente estimulou os leitores a pensar nesse assunto, e a criticar o jornal. De modo geral, eles se sentem mal informados sobre os candidatos que concorrem a uma vaga no Congresso e nas assembléias, e concordam em um ponto: do jeito como é, o horário eleitoral no rádio e na TV não ajuda em nada. Quem não tem candidato, não é nesses programas que vai arrumar.

Também de modo geral, os leitores contam com a ajuda do jornal para decidir seu voto em 3 de outubro. Mas o jornal se ocupou pouquíssimo dessa tarefa. Durante algumas semanas, apresentou candidatos numa seção de seu caderno Supereleição, a "Opção de Voto". Na crítica interna, sugeri que o leitor pudesse ao menos conhecer os critérios de escolha dos nomes que apareciam ali; oficialmente, o jornal respondeu dizendo que os critérios não seriam informados para evitar que outros candidatos, argumentando caber neles, requisitassem o espaço na Folha. De qualquer forma, a seção já deixou de ser publicada, e o leitor nunca pôde saber por que foi que alguns ganharam aquele palanque excepcionalmente visível, e outros não.

Voltando ao "Olho no Voto": os leitores que elogiaram o caderno viram nele uma possibilidade de orientar sua escolha. Mas é bom que fique claro: o caderno se ocupou apenas de avaliar o desempenho de candidatos que disputam a reeleição, e apenas para a Câmara. Como o jornal não pretende repetir a dose sequer com os candidatos à assembléia paulista ou ao Senado, não há como não dizer que a Folha fez um bom trabalho -mas pela metade. Os leitores reclamaram disso.

Ocorre ainda que o "Olho no Voto" avaliou o desempenho dos deputados federais que tentam a reeleição usando alguns critérios no mínimo discutíveis. Como se desconhecesse que a atuação parlamentar extrapola as quatro paredes do Congresso, a Folha publicou, por exemplo, a lista de faltas (os dados são oficiais; quanto a isso, não há o que discutir). Mas o jornal colocou no mesmo embrulho as faltas justificáveis (quando o deputado se ausenta da Câmara a trabalho, por exemplo), as faltas políticas (quando ele deixa o plenário para obstruir a votação de uma matéria) e a gazeta pura e simples. Com isso, despolitizou a avaliação.

Para mostrar ao (e)leitor como cada deputado votou em assuntos considerados importantes, o jornal escolheu onze temas (do impeachment de Collor à obrigatoriedade do voto nas eleições). Mas na hora de resumi-los para o leitor, foi de uma superficialidade que pode ter comprometido a compreensão do que se passou nessas votações. Um exemplo: em sete linhas, a Folha explicou o projeto de aumento de salários para os deputados votado (e aprovado) em dezembro de 1991. Mas não informou de quanto era o salário antes da votação, nem quanto de inflação o novo salário estava repondo sobre o antigo.

Num outro exemplo, o jornal usou 25 linhas para explicar o projeto que aumentava o salário mínimo para US$ 100 até 1995, rejeitado em agosto do ano passado. Nas páginas dos jornais, o debate em torno dele consumiu semanas, e muito mais papel. Em sã consciência, ninguém pode ser contrário a um mínimo de US$ 100. O problema é como chegar a ele sem levar à falência prefeituras, pequenas empresas e o sistema de previdência social. Temo que isso não tenha ficado claro no caderno "Olho no Voto", e que a constatação de que determinados deputados votaram contra o projeto tenha também lhes custado alguns votos de (e)leitores irados.

Enfim, como disse um leitor em seu telefonema, é indesculpável que um jornal que consegue produzir excelentes cadernos especiais em megaeventos como a Copa dos EUA (ele falava do Copa 94) não dê conta de preencher alguns vácuos da supereleição, ela também um megaevento (que, sobre a Copa, ainda tem a vantagem de acontecer aqui mesmo). É verdade que se esperava mais desta corrida pelo voto, e o fato de que sua etapa mais atraente, a disputa presidencial, foi praticamente decidida nas pesquisas de intenção de voto transformou toda a cobertura numa chatice.

Nos últimos dias, num esforço para esquentar sua pauta e antecipar o noticiário para seu público, toda a imprensa (com a Folha na frente, diga-se), passou a se ocupar dos planos do futuro governo FHC. Mas é assustador perceber como (quase) todos esses planos dependem do Congresso, e que a uma semana das eleições os (e)leitores continuam reclamando da desinformação a respeito do que pode vir a ser esse mesmo Congresso. Para a próxima eleição, a imprensa já tem uma tarefa complicada e necessária: tem que aprender a preencher o vácuo entre o que ela noticia e o que os candidatos dizem de si mesmo nos programas eleitorais. Caso contrário, vai continuar contribuindo para a manutenção daqueles números com os quais ela mesma se espanta: uma pesquisa Datafolha (publicada também no "Olho no Voto") mostrou que 54% das pessoas sequer se lembram do nome do deputado em que votaram em 1990.

UM ANO E MUITAS LIÇÕES

Na última terça-feira, 20 de setembro, completei um ano de mandato como ombudsman da Folha. No mesmo dia, o cargo completou cinco anos de existência no jornal. Mas, ao contrário dos dois ombudsmen que me antecederam aqui, meu mandato não está sendo renovado. A partir da próxima quarta-feira, a Folha tem um novo ombudsman: o jornalista Marcelo Leite.

Como o leitor já deve saber, os ombudsmen da Folha têm mandato de um ano renovável, de comum acordo entre a Direção de Redação e o próprio ombudsman, por apenas mais um ano. Desde o início, minha intenção era permanecer no cargo por todo esse período. No final de agosto, a um mês do encerramento de meu mandato, a Direção de Redação manifestou sua intenção de me manter no cargo por mais um ano, o que publicamente quero agradecer. Mas algumas questões de ordem particular (e inadiáveis) acabaram me fazendo desistir da idéia -e, confesso, não foi fácil.

Ser ombudsman da Folha, um jornal de quase 1,5 milhão de exemplares aos domingos, é uma responsabilidade enorme e, ao mesmo tempo, um trabalho fascinante. Ao longo de um ano, mais de 7.000 leitores me procuraram para falar do jornal: fazer queixas, apontar erros, reclamar de falhas (eventualmente, um elogio também chega ao ombudsman). Também ao longo de um ano, participei de 27 eventos como palestras, seminários e debates com estudantes, jornalistas e profissionais de outras áreas, no Brasil e fora dele. O que aprendi, nesse ano, vale por dez.

O leitor tem uma visão do jornal que muitas vezes nós, jornalistas, não conseguimos imaginar -exatamente porque, no dia-a-dia, estamos distantes dele. A maneira como esse leitor critica e aponta defeitos é precisa, e surpreendente. Ao longo desse ano, tentei informar o máximo possível a Redação da Folha sobre suas opiniões, suas queixas, suas expectativas em relação ao jornal. Afinal, quem melhor do que um leitor para saber o que é um bom jornal?

Como ombudsman, também pude observar a Folha de uma perspectiva nova: a de sua responsabilidade social. Impressiona perceber, nas cartas e nas conversas com os leitores, quanto eles acreditam no que lêem, quanto dependem dessas informações e quanto um erro pode causar de estragos e problemas. Impressiona perceber que, no dia-a-dia da redação, muitas vezes nos esquecemos disso -de que todo erro, num jornal, desmonta parte dessa credibilidade construída com enorme sacrifício.

No balanço final, só posso dizer que foi uma experiência enriquecedora (todo jornalista deveria ser ombudsman por uma semana, para ouvir as críticas diretamente do leitor; é pedagógico). O convívio com a Direção e a Secretaria de Redação da Folha foi o melhor possível, e a ambos devo a possibilidade de fazer um trabalho livre de quaisquer interferências.

Também o convívio com a Redação foi excelente: recebi mais de 80 respostas e observações à crítica interna ao longo deste ano, o que facilitou a discussão de temas que só melhoram a qualidade final do jornal. Se posso fazer um reparo, entretanto, gostaria que a Redação tivesse sido mais eficiente nas respostas às questões levantadas pelos leitores. Em média, elas demoram até um mês para serem atendidas pela Redação -o que, num jornal diário, é uma eternidade.

Até terça-feira, continuo sendo a ombudsman da Folha. Na quarta, entrego o cargo a Marcelo Leite, um jornalista competente e experiente, e no fim-de-semana saio para alguns poucos dias de merecidas (permita-me, leitor) férias. Nelas, vou fazer a coisa de que mais gosto: ler muito, e ler jornais. Se encontrar problemas, telefono para o ombudsman da Folha, pode acreditar.


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