Folha de S. Paulo


Caindo na (e no) real

Jornalistas em geral reclamam que a imprensa abandonou a reportagem nos últimos tempos. Leitores mais exigentes, idem. Lidos com atenção, os jornais exibem mais declarações, explicações, notas oficiais e desmentidos do que reportagens propriamente ditas. E colunas, muitas colunas. Editorias com assuntos de política e economia parecem ter apenas textos produzidos nos gabinetes do poder e das redações, e é difícil -cada vez mais difícil- encontrar ali o que o jargão interno dos jornais chama de "investimento numa pauta".

Semana passada, remando contra essa maré de burocratismo jornalístico, a sucursal de Brasília da Folha resolveu fazer reportagem e despachou o jornalista Gustavo Krieger para uma fazenda do senador José Paulo Bisol (PSB-RS), vice de Lula na chapa que disputa a Presidência da República. Até então, o senador vinha declarando que emendas suas ao Orçamento da União, reveladas numa denúncia, não beneficiavam a fazenda que fica em Buritis (MG), mas apenas atendiam reivindicações de políticos e da população local, representados por ele.

Krieger conferiu com seus próprios olhos, e revelou diante dos olhos de alguns milhares de leitores da Folha: uma das pontes para as quais as emendas destinam verbas favorece, sim, as terras de Bisol. A reportagem, publicada na edição de quinta-feira, tinha as fotos, os dados, os detalhes. Mereceu o nome de reportagem, e se transformou numa prova incontestável de que Bisol, mesmo que não tivesse a intenção de se beneficiar, deve explicações aos (e)leitores (há ainda a denúncia de que as emendas teriam valores superfaturados, o que só complica o caso).

Ao despachar um repórter para conferir "in loco" as denúncias contra o senador Bisol, a Folha fez exatamente o que os leitores esperam de um (bom) jornal. E, ao mesmo tempo, não fez mais do que sua obrigação. O jornal considerou que Bisol é vice do candidato mais bem colocado nas pesquisas de intenção de voto, e a julgar pela história recente do Brasil, pode até chegar à Presidência da República (Lula que me perdoe, não estou agourando sua saúde ou duvidando de sua honestidade, mas os dois últimos vices acabaram lá). A Folha poderia ter continuado a ouvir as declarações de Bisol sobre o caso, registrando-as diariamente em suas páginas. Preferiu fazer reportagem, e depois dela o caso mudou de perfil. Antes, Bisol podia dizer que as emendas não o beneficiavam. Depois, ficou impossível. O senador foi colocado diante dos fatos. Como se diz, caiu na real. Agora, o PT discute se ainda o quer como vice de Lula.

É por essas e outras que jornalistas e leitores sentem saudades da reportagem nos jornais.

A imprensa também caiu na real (melhor dizendo, no real), e passou a semana toda se desdobrando para explicar aos leitores como funciona a nova moeda. Publicou cartilhas e fez malabarismos com suas páginas (a Folha chegou a deslocar o noticiário de Mundo para o primeiro caderno, tirando espaço das notícias de Brasil, para acomodar melhor o Plano Real). Ofereceu ao leitor extensas listas com a conversão do dinheiro velho para o dinheiro novo. Ainda que tenha sido uma morte (muito) anunciada, a do cruzeiro real acontece num clima de confusão, graças à conversão em valores quebrados que o governo impõe aos brasileiros.

Até o momento em que escrevo esta coluna, a imprensa tem se mantido dentro de padrões de imparcialidade diante do novo plano -um plano que pode eleger um presidente. É verdade que, na noite de sexta-feira, o "Jornal Nacional" já demonstrava uma certa euforia em relação à nova moeda, chamando-a repetidamente de "estável" (também até o momento em que escrevo esta coluna, nada nem ninguém garante que o plano vai mesmo dar certo e o real será, enfim, a nossa moeda estável). Mais: o noticiário oferecido a milhões de brasileiros incluiu uma reportagem feita em Londres, sobre como se vive numa economia sem aumentos de preços. Num esforço de reportagem, o "Jornal Nacional" conseguiu entrevistar um sujeito que garantia ter visto recentes mudanças de preços num mercado londrino -mudanças para baixo.

Que torcemos, todos, por alguma estabilidade no Brasil, é inegável. Mas a imprensa não pode ceder à tentação de assinar em branco o cheque do Plano Real, especialmente porque ele envolve uma candidatura ao Palácio do Planalto. Sugiro ao leitor que redobre sua atenção para eventuais excessos nos próximos dias. E que cobre esses excessos da imprensa. Mesmo porque, para dar certo e ir além das eleições, o plano precisa da fiscalização da sociedade. Quem melhor do que a imprensa verdadeiramente independente e sem compromissos para fazer isso?

NOTAS
Junho começou agitado e terminou relativamente calmo para a ombudsman: foram 485 atendimentos ao longo do mês (confira no quadro ao lado), contra 572 em maio. Há uma explicação: desde o início da Copa, os leitores parecem ter voltado suas atenções para outros assuntos que não o jornal. Em dia de jogo do Brasil, o telefone praticamente não toca. E as reclamações mais frequentes contra o caderno de Esporte (poucas páginas, poucas reportagens, falta de destaque para os principais assuntos) simplesmente desapareceram desde que ele passou a ser o Copa 94. O investimento da Folha no mundial de futebol, o maior já feito pelo jornal num único evento, rendeu bons resultados junto ao leitor, a julgar pela repercussão (mais do que isso, pela falta de reclamações) que têm chegado à ombudsman.
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Na terça-feira, os três principais jornais cearenses publicaram um informe publicitário em página inteira, que reproduzia trechos de uma reportagem da Folha do domingo passado, aquela que mostrava "o Ceará que não aparece na TV". As páginas foram pagas pela Fundação Pedroso Horta, ligada ao PMDB, ao custo de US$ 50 mil, segundo apurou a reportagem da Folha em Fortaleza.

Para reproduzir trechos ou reportagens inteiras de qualquer jornal, é preciso ter autorização do jornal. Nem a fundação, nem a agência de publicidade que montou os anúncios preocuparam-se com o detalhe. Pior do que isso, os anúncios "editaram" o material da Folha segundo as conveniências da fundação e do próprio PMDB cearense, que tem interesse em desqualificar a administração tucana de Ciro Gomes e atrapalhar a recondução de Tasso Jereissati ao governo (ele tem 64% das intenções de voto no Ceará). A reportagem da Folha, um retrato equilibrado das condições de vida no Ceará que os brasileiros não vêem na novela "Tropicaliente", da Rede Globo, acabou se transformando num amontoado de críticas contra o PSDB local, no poder há oito anos.
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A Agência Folha, detentora dos direitos autorais sobre a reportagem mutilada nos anúncios, está tomando as medidas judiciais que cabem neste caso. A Folha publicou texto na quarta-feira, contando o que ocorreu a seus leitores. Estranho é que os três jornais cearenses ("Diário do Nordeste", "O Povo" e "Tribuna do Ceará") tenham se calado sobre o episódio. Diante das evidências de que os informes publicitários continham uma grosseira manipulação de informações, poderiam ter recusado os anúncios. Não recusaram. Depois de publicados, deveriam ao menos ter contado a seus leitores que os informes publicitários desinformavam. Não contaram. Se não queriam tomar partido político numa briga idem, o que é louvável, os jornais cearenses poderiam ao menos ter informado seus leitores que os anúncios distorciam a reportagem da Folha, o que é antiético. Ficaram quietos. Cada um deve ter lá as suas razões. E seus leitores devem saber quais são.
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"Informação e poder", livro organizado pelo jornalista José Paulo Cavalcanti Filho (ex-Folha, onde assinava a coluna "Recife", na pág. 1-2), com prefácio de Janio de Freitas e reflexões de juristas e jornalistas de peso, merece estar na biblioteca de quem se interessa pelo tema imprensa. O subtítulo do livro diz tudo: "Ampla liberdade de informar X Responsabilidade no exercício dessa liberdade". A editora é a Record, e ele já está nas livrarias. Recomendo, e para isso lanço mão do prefácio de Janio de Freitas: "Os meios de comunicação figuram entre os mais graves problemas brasileiros, por uma infinidade de motivos. Com esta particularidade notável: nenhum problema é mais silenciado. Em parte, porque os próprios meios de comunicação selecionam os problemas a serem expostos publicamente".


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